segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Da vergonha alheia

O portuguesinho, xenófobo e ignorante até à medula, parece ter sofrido um choque ao ver chegar uma refugiada que teve a ousadia de se apresentar da forma como se veste todos os dias. De nicab. O portuguesinho, é claro, por não saber onde é a Síria e já há muito se ter libertado do invasor muçulmano, estava convencido que da Síria viriam eslavas de mini-saia e saltos agulha. O portuguesinho esperava que o estatuto de refugiada da senhora de nicab, ao menos, a levasse à gratidão de não lhe incomodar a xenobofia, apresentado-se ao mundo como provavelmente nunca na vida pós púbere se apresentou aos seus amigos.
O portuguesinho é iletrado, nunca viajou e ainda por cima é esquecido. Se soubesse ler, saberia onde fica a Síria. Se viajasse, não perguntaria como podem estas senhoras ir ao banco, ou ao médico ou às lojas, pois já as teria visto em Londres, em Paris e em Madrid. Se não fosse esquecido ocorrer-lhe-ia, por exemplo, que a sua bisavó lá da província, usou a vida inteira um lenço na cabeça e não o tiraria por coisa nenhuma. 
O portuguesinho está cheio de medo. 
E não merece receber refugiados. 
Para fazer o que é certo, é necessária muita coragem.

14 comentários:

  1. Escrever sobre a portuguesinha, por exemplo, faz falta (isto de se ignorar matriarcas é um perigo, eu bem digo, mas não há quem me escute: o portuguesinho é o que a portuguesinha dele fez e quanto a isto não tenho dúvidas, bastou-me confrontar o meu pai aos 18 e cair-me o matriarcado todo - quando homem algum da família abriu a boca - em cima e ele calado, para ter percebido pelo menos metade das estórias, nomeadamente as da submissão delas...).

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    1. Tens razão. A criadora do portuguesinho é a portuguesinha. Mas este portuguesinho do post é daqueles com P maiúsculo. Válido para ambos os géneros.

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  2. E esse portuguesinho com P maiúsculo defende-se do seu comentário desdenhoso - que lá saberá, acredito, que é desdenhoso o seu comentário - sobre a veste da refugiada, dizendo que há tantos outros portuguesinhos por aí a precisar tanto e as autoridades abrem as portas a esses muçulmanos perigosos em vez de ajudar os nossos.
    Mas Cuca, eu acredito que sendo o nosso coração luso como é, os medos ir-se-ão embora depressa (sim, sou optimista) e a hospitalidade falará mais alto. Basta cada um de nós portuguesinhos cruzarmo-nos com uma dessas refugiadas e entravar conversa com elas. Ou com eles. E perceber que afinal são pessoas. Se calhar com mais medo que nós. E assustados de nos verem a nós, mulheres "sem roupa", com o pescoço à mostra, e os ombros, os braços ou as pernas.
    Acredito também que muitos de nós, portuguesinhos mimados, vamos aprender grandes lições de vida. Estou muito curiosa, estou estou. E estou sobretudo contente por estarmos a ajudá-los.

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    1. Escrevi este comentário com tanto entusiasmo, que meti água: em vez de escrever "travar conversa", saiu-me "entravar". Peço desculpa.

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    2. Não sei se os medos se irão assim tão cedo porque a época é propícia ao medo. Acho que os refugiados se irão embora antes dos medos.

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  3. Em certos meios, vozes-consciência como as da Cuca vão sendo tão raras, que até nos esquecemos serem muitíssimo pouco inteiros. Gostei muito de ler. Vou mais bem disposta para hoje. Obrigada, Cuca!

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  4. lamento que tenhas generalizado a questão da vinda de refugiados (a qual apoio no terreno), com o uso (permissão) do nicab em solo português. quando o governo sírio, em 2010, aprovou uma lei a proibir o uso do nicab, foi considerado progressista e bem visto aos olhos dos ocidentais, mas agora, nós ocidentais, temos de fingir que o uso do nicab em Portugal é algo normal. não é, nem deveria ser, nunca. permiti-lo é perpetuar tudo o que representa e a sua continuação.

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    1. O post não faz a apologia do nicab. Crítica as reações ao nicab. São coisas distintas.

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    2. Cuca, eu também reajo mal ao nicab - falar para um pano, reduzir um ser humano a um pano, foi dos momentos profissionais mais difíceis que já tive - e não me vejo como uma xenófoba.

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    3. (e desculpa se de alguma forma os meus comentários desvirtuaram o teu texto. entendo que o ponto fulcral do mesmo seja o respeito pelo o Outro, pelo que acolhemos, incluindo as suas crenças e formas de estar. lido com regularidade com muçulmanas que usam hijab, aceito, mesmo pensando de maneira diferente. mas o nicab e a burka ultrapassam os meus níveis de tolerância.)

      abraço.

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    4. O post é a reação de indignação a isto http://blasfemias.net/2015/11/08/o-problema-dela-e-nosso-problema/ e subsequentes comentários que li nas redes sociais por parte de pessoas que tinham obrigação de saber mais.
      Não defendo nenhuma forma de entrapamento das mulheres e nem sequer só especialmente defensora daquela coisa do multiculturalismo. Mas é como dizes, é uma questão de respeito pelo outro. E é outra coisa: é perceber que há muito quem use o pretexto do nicab para destilar aquilo que não passa de islamofobia e de uma total indisponibilidade para perceber outras culturas. É que mesmo que a ideia seja amenizar os aspetos do islão que mais nos chocam, até para isso continua a ser necessário entendê-lo.
      E tu sabes provavelmente até melhor do que estas mulheres não vão - não podem - atirar os nicabs fora só porque foram obrigadas a refugiar-se.
      A minha questão, em suma, é que a reação a este episódio (previsível) demonstra muita má vontade e muito medo.
      (E claro que não há nada para desculpar. É a tua posição sobre o assunto)

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  5. Clap clap clap! Cuca quando pega, a Cuca pega!

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  6. *Anónimo mauzão toca violino sobre os esperados comentários a um post feito para provocar.

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  7. http://lifestyle.publico.pt/noticias/353621_hm-usa-pela-primeira-vez-uma-modelo-com-hijab-numa-campanha

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