Não sei quando foi que aconteceu. Não é o tipo de coisa com que numa manhã de, por exemplo, segunda feira, se acorde colada ao rosto depois de uma noite mais ou menos insone.
Começámos todos por deixar de escrever cartas de amor. Talvez por termos lido nas cartas dos poetas um amor que julgámos maior do que o nosso, sem perceber, contudo, que foram as palavras que lhe deram a substância do crescimento. Talvez por termos pensado que as letras sobreviveriam ao sentimento, tatuando-o no vazio, sem perceber, contudo, que não há sensação alguma que não seja eterna.
Depois de o termos deixado de escrever, deixámos igualmente de dizer o amor. Entregámo-nos à ingrata omissão como devotos desassumidos de todo um sistema filosófico assente na antinomia da força e da fraqueza. Pronunciávamos as palavras e pareciam-nos absurdos pastiches de novelas mexicanas de som desconectado da imagem. Éramos menos vulneráveis e mais inteiros se silenciássemos qualquer rasto da nossa humanidade. Tratámos os amantes como inimigos e eles declararam-nos uma guerra em que o vencedor era aquele que se tivesse apropriado de toda a indiferença.
Foi mais ou menos por essa altura que o choro caiu em desuso. Agora já ninguém se lembra da coragem que era necessária para exibir perante os outros um rosto bem lavado pelas lágrimas.
Por fim, não escrito nem dito, o amor tornou-se inútil como um segredo embrulhado na naftalina do armário. Deixámos, pois, de o sentir. Foi a fase do darwinismo sentimental.
Estudámos-lhes a composição química para memória futura. Tratámos os últimos doentes com benzodiazepinas e detalhadas explicações científicas sobre a natureza imbecil do seu estado.
O amor é, agora, uma inofensiva ampola guardada num laboratório secreto.
Não é um lamento. Nunca gostei do amor.
É a nostalgia da falta das cartas de amor que me aborrece profundamente.
"O amor é, agora, uma inofensiva ampola guardada num laboratório secreto."
ResponderEliminarPrestei particular atenção aos verbos...
Ampolar também daria um bom verbo.
EliminarPor exemplo.
Eliminar___
p.s. - tentar definir o amor equivale bem àquilo de tentar definir o sentido da vida. Se eu pensar no amor que tenho pelas minhas filhas, por exemplo, a conversa fica arrumada (no que me diz respeito): sou um animal, nada de elucubrações, etc.
o amor é um sentimento bastante vulgar, e o desamor ainda mais; por isso as cartas de amor foram substituídas por sms de amor, frenéticas e descartáveis, com cada vez mais carrascos do amor e vítimas do desamor.
ResponderEliminarSMS de amor soa mesmo a coisa horrível
Eliminar:)
A palavra amor é que inchou inchou e transpôs fronteiras. Devíamos retorná-la ao seu mínimo mas certo casulo. Para podermos voltar a respeitá-la.
ResponderEliminarE é a minha vez de comentar com um poema:
"o amor faz-me inchar
o fim do amor também
de resto sou uma pessoa magra"
Sónia Balacó - "Constelação"
Obrigada pelo poema, Susana.
EliminarÉ uma palavra muito gasta, de facto.
Maravilhoso! Maravilhoso!
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