quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Percorrendo os céus, sentado na cauda de um cometa

Abriu e fechou as mãos um par de vezes e ficou parado a contemplar os dedos compridos, assim esticados, na humidade gelada da noite.
Depois, começou a correr.
Ao fundo, estava a cidade e as suas luzes que não a tornaram menos cinzenta. Nunca a cidade lhe pareceu tão opressora como no último dia em que a viu. Impossível lembrar-se do cinema onde o seu pai o levava para o distrair das desajustadas angústias cosmológicas de criança; das ruas por onde passeou de mãos dadas com alguma mulher que por instantes amou; da livraria onde ao acaso abriu a página que lhe deu a conjugação de letras do que veio a ser o seu melhor poema; daquela cave onde ensaiou acordes na guitarra com a banda punk rock da adolescência. Impossível lembrar-se do que o poderia ter salvo.
Também não se lembrou de nós, que o matámos de tédio, insultando-lhe a esperança para além da reserva com as nossas cozinhas equipadas, os nossos projetos de felicidade burguesa e os resorts onde nos internávamos nas férias. A estupidez crescente, a miopia que se agarra à necessidade de sobrevivência, o definhamento da alma, penso, às vezes, foram a minha contribuição pessoal para o combustível de que se alimentaram as chamas do incêndio que se formou nas suas costas. Porque, percebo-o agora, era como estar parado no meio de um incêndio que ameaçava consumir-lhe a carne ou como respirar o fumo espesso que faz doer os pulmões. 
Apesar do frio, o sangue ferveu-lhe na excitação e no esforço da corrida. 
Treinou aquele número demasiadas vezes para que a execução fosse menos do que perfeita. Parou durante trinta segundos para engolir o ar com a avidez com que engoliu a vida. 
Olhou para o céu. Encontrou o cometa. Saltou ao seu encontro.
Na cauda do cometa, ainda, o rasto das chamas de que se libertou. 

4 comentários:

  1. Todos os dias observo esse incêndio nas minhas costas, fogo que alimento me não movendo. Todos os dias pressinto crescentes o odor a carne queimada e a dor nos pulmões mirrados. Já não chega a ser dor nem odor, de há uma eternidade assim exposta, assim imóvel.

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