segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Diário de Bordo

Morreu Herberto, o escritor octogenário com quem na última primavera mantive um tórrido romance platónico e epistolar.
A notícia chegou-me ao cair da noite quando Gualtiero, o italiano, entrou na minha camarata com um envelope preto com uma caveira desenhada a giz. O meu coração, em tempos tão sincronizado com a mente deste homem, ensurdeceu-lhe de tal forma que confundi a morte anunciada naquele envelope indiscreto com um convite para um baile de uma qualquer organização sindical piratística.
Dentro do envelope havia a última carta que receberei de Herberto e uma breve nota explicativa da autoria da infeliz viúva e provável ideóloga do carnavalesco envelope. Herberto era um homem de excelente gosto e sei que teria escolhido papel machè, mate e em tom creme, para missiva anunciadora do seu óbito.
A viúva não fez qualquer alusão ao envólucro da mensagem e ficarei para sempre na dúvida se traduziu a intenção de uma boa alma de amortecer o choque da notícia, como se o envelope correspondesse ao clássico "senta-te que tenho uma má notícia para te dar", ou se apenas pretendeu vingar-se do marido morto, atingindo-o na sua sobriedade.
Na nota, em que omitiu igualmente qualquer referência à natureza da minha relação com Herberto,  a senhora limitou-se a informar-me que o seu marido morreu vítima dos ventos ciclónicos que atingiram a cidade de Lisboa (o que muito estranhei, já que nada ouvi sobre tal assunto nas notícias) e que lhe competia cumprir os últimos desejos do falecido, que, aparentemente, incluíram fazer-me chegar um bilhete manuscrito naquilo que me pareceu ser papel de toalha de mesa (com nódoas de vinho tinto), em letra apressada e quase ilegível.
Herberto, o escritor, sem grandes explicações sobre o fenómeno atmosférico que acabou por lhe roubar a vida, anunciou-me que era improvável que sobrevivesse às próximas duas horas; disse-me que tinha gostado muito de me conhecer e ameaçou encontrar-me na eternidade, onde certamente cuidou reunirem-se condições mais propícias à plena consumação de um amor que esta vida madrasta não favoreceu.
Não vou a tempo de lhe explicar que a minha eternidade está de tal forma cheia de encontros compensatórios das imperfeições desta existência que temo que os dias do tempo total não me cheguem e seja mais avisado começar já a anotá-los numa agenda.
Mais do que ter sido objeto dos quase últimos pensamentos de Herberto, comoveu-me o facto de me ter feito sua herdeira.
No meio daquelas linhas torturadas descodifiquei o seguinte parágrafo:
"Deixo-lhe uma estante cheia de Banda Desenhada, dez livros da Agustina, sob condição resolutiva de que um dia os leia, cinquenta por cento dos meus livros de poesia, correspondentes à metade da minha alma, e vinte por cento da minha discografia de Bach". 
Esperava que Herberto me oferecesse em legado as minhas próprias cartas, já que os romances epistolares, além de todas as outras evidentes desvantagens, trazem consigo problemas de indiscrição, dificilmente pensáveis pelos apologistas das SMS. 
Sobre isso, Herberto deu uma explicação:
"Saberá a minha amada que a vida de um escritor nestas terras de bárbaros nem sempre permite assegurar a sobrevivência de uma pobre viúva. Leguei à minha mulher as cartas que teve a gentileza de me enviar, devidamente assinadas. Seguro-a, assim, na sua honra".

Herberto era, afinal, um Pirata.



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