Consigo ver-te da minha sala quando te penduras na janela da cozinha a fumar um cigarro.
Consigo ver a tua vida porque apesar da forma meticulosa como decoraste a casa, esqueceste-te de comprar cortinas.
Não tens mais de trinta e dois anos. No passado, leste todos os livros que pudeste, namoraste com todos os homens que quiseste, acreditaste no futuro que te vaticinaram.
Agora, tens um daqueles maridos dos anúncios, com um carro das revistas, que faz sempre mais barulho do que os outros quando o seu dono, teu marido, sai de casa às oito da manhã vestido com os fatos que lhe escovas na varanda do quarto.
O teu cabelo aloura proporcionalmente à velocidade com que emagreces. Aumentas o tamanho dos decotes para que o dono do carro perceba que tem uma mulher ao lado. Mas o dono do carro está sempre ao telemóvel.
Chegas a casa antes dele para lhe cozinhares um jantar de Japanese fusion que há-de ser comido com algum desdém e duas horas de atraso. Sem te avisar.
Sentas-te à mesa e fazes o teu melhor sorriso enquanto lhe perguntas como foi o dia dele. Aprendeste a fazer isto com a tua mãe. Que aprendeu a fazer isto com a tua avó.
O teu marido nunca te pergunta como foi o teu dia. Não lhe interessa. A ti também já não te interessa. O teu dia começa no instante em que ele toca à campainha por não se dar ao trabalho de tirar as chaves do bolso. O porta-chaves custou-te um mês de salário ganho com um emprego que ninguém percebe porque manténs.
Todos os dias, depois do jantar, ele deita-se no sofá a assistir a um programa de televisão enquanto pensa numa maneira de ganhar ainda mais dinheiro. Tu escondes os pratos na máquina de lavar louça que a empregada há-de ligar no dia seguinte. Sentas-te ao lado dele. Insistes numa tentativa falhada de carinho de fim de dia. Levantas-te. Voltas à cozinha. Abres a janela e penduras-te a fumar um cigarro.
É nesse instante, em que o dia acabou de começar e já antecipas o prenúncio do seu final, que te ocorre que as noites são cada vez mais curtas. Que o teu marido preenche a sua ausência com os gadgets com que enfeita a casa. Que nunca vais ter um filho porque não condiz com a decoração da sala nem é compatível com automóveis desportivos dois lugares. Ou Barbies humanas.
Às vezes, aos fins-de-semana, ele desliga o telemóvel para receber os amigos. Ficas com a sala cheia de pessoas que, depois de te estenderem os casacos para que os pendures, se esquecem que existes até chegar o momento em que o teu marido lhes chama a atenção para ti com uma história doméstica engraçada. Fazes parte de um número de circo. És a partner do dono do negócio. Ganhas uma taça de Champagne.
Sabes que se te queixares o suficiente terás um novo Rolex que enviarás desapaixonadamente para o cofre de um banco onde fará companhia a uns quantos Chaumet. Ou uma viagem a um país distante onde não vais ter com quem partilhar o fascínio da tua primeira visão do monumento lá do sítio, porque o teu marido vai estar uns passos atrás a ultimar os pormenores do negócio que te pagará a próxima crise conjugal.
Também sabes que, se te queixares demais, um dos telemóveis para onde ele agora liga às tuas escondidas, passará a tocar na (já só dele) sala de estar. A avisar que está atrasado.
Acho que esse teu esquecimento na compra das cortinas é uma mensagem inconsciente, trancada numa garrafa que atiras ao mar. Todos os dias.
Fumas o cigarro com a expressão de um animal encurralado entre um sonho e um pesadelo sem que consigas decidir qual é a realidade e qual é a mentira. Os livros que leste não te ensinaram a viver na desilusão que se instala quando se desvenda, por dentro, o cenário dos filmes.
Às vezes, vejo-te, pendurada na janela da cozinha, a brincar com a gravidade. Conheço demasiado bem o teu olhar.
Não tens mais de trinta e dois anos. No passado, leste todos os livros que pudeste, namoraste com todos os homens que quiseste, acreditaste no futuro que te vaticinaram.
Agora, tens um daqueles maridos dos anúncios, com um carro das revistas, que faz sempre mais barulho do que os outros quando o seu dono, teu marido, sai de casa às oito da manhã vestido com os fatos que lhe escovas na varanda do quarto.
O teu cabelo aloura proporcionalmente à velocidade com que emagreces. Aumentas o tamanho dos decotes para que o dono do carro perceba que tem uma mulher ao lado. Mas o dono do carro está sempre ao telemóvel.
Chegas a casa antes dele para lhe cozinhares um jantar de Japanese fusion que há-de ser comido com algum desdém e duas horas de atraso. Sem te avisar.
Sentas-te à mesa e fazes o teu melhor sorriso enquanto lhe perguntas como foi o dia dele. Aprendeste a fazer isto com a tua mãe. Que aprendeu a fazer isto com a tua avó.
O teu marido nunca te pergunta como foi o teu dia. Não lhe interessa. A ti também já não te interessa. O teu dia começa no instante em que ele toca à campainha por não se dar ao trabalho de tirar as chaves do bolso. O porta-chaves custou-te um mês de salário ganho com um emprego que ninguém percebe porque manténs.
Todos os dias, depois do jantar, ele deita-se no sofá a assistir a um programa de televisão enquanto pensa numa maneira de ganhar ainda mais dinheiro. Tu escondes os pratos na máquina de lavar louça que a empregada há-de ligar no dia seguinte. Sentas-te ao lado dele. Insistes numa tentativa falhada de carinho de fim de dia. Levantas-te. Voltas à cozinha. Abres a janela e penduras-te a fumar um cigarro.
É nesse instante, em que o dia acabou de começar e já antecipas o prenúncio do seu final, que te ocorre que as noites são cada vez mais curtas. Que o teu marido preenche a sua ausência com os gadgets com que enfeita a casa. Que nunca vais ter um filho porque não condiz com a decoração da sala nem é compatível com automóveis desportivos dois lugares. Ou Barbies humanas.
Às vezes, aos fins-de-semana, ele desliga o telemóvel para receber os amigos. Ficas com a sala cheia de pessoas que, depois de te estenderem os casacos para que os pendures, se esquecem que existes até chegar o momento em que o teu marido lhes chama a atenção para ti com uma história doméstica engraçada. Fazes parte de um número de circo. És a partner do dono do negócio. Ganhas uma taça de Champagne.
Sabes que se te queixares o suficiente terás um novo Rolex que enviarás desapaixonadamente para o cofre de um banco onde fará companhia a uns quantos Chaumet. Ou uma viagem a um país distante onde não vais ter com quem partilhar o fascínio da tua primeira visão do monumento lá do sítio, porque o teu marido vai estar uns passos atrás a ultimar os pormenores do negócio que te pagará a próxima crise conjugal.
Também sabes que, se te queixares demais, um dos telemóveis para onde ele agora liga às tuas escondidas, passará a tocar na (já só dele) sala de estar. A avisar que está atrasado.
Acho que esse teu esquecimento na compra das cortinas é uma mensagem inconsciente, trancada numa garrafa que atiras ao mar. Todos os dias.
Fumas o cigarro com a expressão de um animal encurralado entre um sonho e um pesadelo sem que consigas decidir qual é a realidade e qual é a mentira. Os livros que leste não te ensinaram a viver na desilusão que se instala quando se desvenda, por dentro, o cenário dos filmes.
Às vezes, vejo-te, pendurada na janela da cozinha, a brincar com a gravidade. Conheço demasiado bem o teu olhar.
Se não tens cuidado, um dia destes ainda cais.
Adorei este texto!
ResponderEliminarObrigada, Polo.
ResponderEliminarCuca a descrever, como ninguém, um par de olhos baços.
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