sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Dling dlong

Visto o meu mais inocente vestido e deito-me no divã para não ter de enfrentar o olhar terrível. Sento-me à secretária e finjo que me ouço. Explico que há algures no prédio uma campaínha avariada que é a metáfora da minha memória. Um dling dlong contínuo a ressoar no meu cérebro. Coisa suscetível de levar qualquer pessoa normal à loucura. Deve vir nos livros da especialidade. Olho a ponta das unhas, e ocorre-me que deveriam ser arranjadas. Lamento a falta de uma ampulheta e pergunto-me "e que mais?". Ignoro a mancha no tecto enquanto desfio o rosário de factos quotidianos que me causam perturbação. São coisas objetivas: três quilos de tangerinas que comprei devido a um erro de comunicação e agora apodrecem na fruteira. Uma conta de fornecimento de água que me esqueci de pagar e o transtorno de ter de pedir novas referências para o multibanco. A falta de um botão no vestido de hoje de manhã. O livro esgotado que não consigo obter e que subitamente parece ser a mais grave omissão da minha vida. Tudo embalado por um permanente dling dlong de uma campaínha avariada que é a metáfora da minha memória. Hesito entre pegar numa lima para resolver o problema das unhas ou manter a postura profissional. É uma falsa hesitação. Digo que apenas o problema da campaínha é verdadeiro e que todos os outros são ecos. "E o da memória?", ouço-me perguntar à sala vazia que me responde com o dling dlong da campaínha do prédio do lado. Pego na lima das unhas para dar a sessão por oficialmente encerrada. Congratulo-me por não ter chegado a dizer o que penso de pessoas que decidem ter aulas de piano apenas para aprenderem a tocar uma única música. Junto a mancha no tecto às minha perturbações quotidianas. Revejo mentalmente aquilo da escala pentatónica. Dling dlong. 

2 comentários:

  1. o comentário que tinha destino para esta caixa foi parar a outra, mas assim quis o destino e lá ficou...
    se servir de consolo, andei a perseguir um livro esgotado durante um ano e quando finalmente o consegui, atirei-me a ele exactamente como tu escreveste, como se fosse a mais grave omissão... e ao fim de algumas páginas constatei que era uma tremenda desilusão, ainda nã o terminei, e nã sei se o farei...

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    1. Abandona-o já. Um livro não pode fazer-nos uma desfeita dessas.

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