
Foi numa tarde de Agosto, em Veneza, que vivi o mais próximo daquilo que se costuma chamar uma experiência mística.O santo padroeiro da trip foi Giovanni Antonio Fumiani.
Atrasada para um almoço tardio com uns amigos, acabei por me desorientar nas praças de Veneza e perdi-me. Se não se desse o caso de ter sido apanhada por uma súbita e improvável tempestade de verão, dificilmente teria entrado na igreja de St. Pantalon. Inexplicavelmente, não vem na maior parte dos guias turísticos e o aspecto exterior da igreja não é convidativo. Para mais, St. Pantalon é uma igreja com serviço religioso regular, menos frequentada por turistas do que por velhos paroquianos.
Quando entrei na igreja com o único objectivo de evitar que a chuva me estragasse a maquilhagem, aborrecida e atrasada, fui imediatamente esmagada por Fumiani. Tive uma ligeira sensação de desmaio, sentei-me no primeiro banco que vi e passei os quarenta minutos seguintes com os olhos fixos no tecto, num estado de semi-nirvana.
Fumiani pintou a subida das almas ao céu através do tecto da igreja. Mas pintou-as de uma forma tridimensional, com um movimento frenético e um ritmo tão intenso que, logo que se entra, é-se assolado pela visão de um corropio de almas em hora de ponta que escolheram o tecto de St. Pantalon para o momento da ascensão.
Sugestionado, o meu cérebro convenceu-se que também eu estava morta e desencadeou um processo pavloviano de libertação de qualquer coisa que temo que fosse a minha alma.
Foi a única vez que a senti.
Fumiani nasceu em 1645 em Veneza, andou por Bolonha, pintou algumas coisas de que nunca ninguém normal ouviu falar e depois voltou para Veneza onde passou vinte e quatro anos a pintar o tecto que quase me desalmou. A poucas pinceladas do final, diz-se, desequilibrou-se enquanto pintava, caiu do escadote e morreu. Está lá enterrado até hoje.
Quando a minha alma estava quase a ver-se livre de mim apareceu um padre antipático que correu comigo para fora da igreja e terminou abruptamente o processo de ascensão aos céus.
Só espero que, se tiver mesmo uma alma, coisa que ainda não decidi, a interrupção selvagem não lhe tenha provocado nenhum trauma que a aprisione para sempre neste mundo de gente doida. Ou que, tendo-se habituado ao melhor, insista em só ascender através do tecto de Fumiani.
Pelo sim, pelo não, recuso-me a morrer fora de Veneza.
Pelo sim, pelo não, recuso-me a morrer fora de Veneza.
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