quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ascensões e quedas


Foi numa tarde de Agosto, em Veneza, que vivi o mais próximo daquilo que se costuma chamar uma experiência mística.
O santo padroeiro da trip foi Giovanni Antonio Fumiani.
Atrasada para um almoço tardio com uns amigos, acabei por me desorientar nas praças de Veneza e perdi-me. Se não se desse o caso de ter sido apanhada por uma súbita e improvável tempestade de verão, dificilmente teria entrado na igreja de St. Pantalon. Inexplicavelmente, não vem na maior parte dos guias turísticos e o aspecto exterior da igreja não é convidativo. Para mais, St. Pantalon é uma igreja com serviço religioso regular, menos frequentada por turistas do que por velhos paroquianos.
Quando entrei na igreja com o único objectivo de evitar que a chuva me estragasse a maquilhagem, aborrecida e atrasada, fui imediatamente esmagada por Fumiani. Tive uma ligeira sensação de desmaio, sentei-me no primeiro banco que vi e passei os quarenta minutos seguintes com os olhos fixos no tecto, num estado de semi-nirvana.
Fumiani pintou a subida das almas ao céu através do tecto da igreja. Mas pintou-as de uma forma tridimensional, com um movimento frenético e um ritmo tão intenso que, logo que se entra, é-se assolado pela visão de um corropio de almas em hora de ponta que escolheram o tecto de St. Pantalon para o momento da ascensão.
Sugestionado, o meu cérebro convenceu-se que também eu estava morta e desencadeou um processo pavloviano de libertação de qualquer coisa que temo que fosse a minha alma.
Foi a única vez que a senti.
Fumiani nasceu em 1645 em Veneza, andou por Bolonha, pintou algumas coisas de que nunca ninguém normal ouviu falar e depois voltou para Veneza onde passou vinte e quatro anos a pintar o tecto que quase me desalmou. A poucas pinceladas do final, diz-se, desequilibrou-se enquanto pintava, caiu do escadote e morreu. Está lá enterrado até hoje.
Quando a minha alma estava quase a ver-se livre de mim apareceu um padre antipático que correu comigo para fora da igreja e terminou abruptamente o processo de ascensão aos céus.
Só espero que, se tiver mesmo uma alma, coisa que ainda não decidi, a interrupção selvagem não lhe tenha provocado nenhum trauma que a aprisione para sempre neste mundo de gente doida. Ou que, tendo-se habituado ao melhor, insista em só ascender através do tecto de Fumiani.
Pelo sim, pelo não, recuso-me a morrer fora de Veneza.

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