sábado, 18 de dezembro de 2010

Desaparecida de casa da sua patroa


Maria Alice desapareceu.
É possível que se tenha esquecido do caminho para casa. Que não tenha tido a lembrança de perguntar a um transeunte como se utiliza o telemóvel que o marido lhe ofereceu no aniversário. Que se tenha sentado numa paragem de autocarros, confusa e pacientemente, à espera que passe um número que a linguagem matemática ainda não criou. E até é possível que depois de um transplante de cérebro se tenha lembrado de me assaltar e fugir com o dinheiro para um paraíso tropical, lá para os lados de Tróia.
O facto é que Maria Alice desapareceu da minha vida, sem rasto humano, relegando-se para o plano dos fantasmas. Aqueles que, nos dias piores, me obrigam a duvidar da minha memória chegando-me a fazer crer que nunca passaram de uma sórdida invenção minha.
Maria Alice foi a empregada doméstica mais inútil que tive na vida. Manteve a minha casa sobriamente suja e redecorou-lhe os cantos com montinhos de tralhas empilhadas que se recusava a arrumar. Culpou-me por todas as suas ineficiências. Queimou-me camisas e vestidos. Transformou em cinzentos todos meus soutiens brancos. Obrigou-me a esperar por ela durante horas a fio. Usou a minha televisão para assistir a telenovelas de má qualidade. E no dia em que foi lida a sentença do Carlos Cruz, abandonou as lides a meio demasiado revoltada com o sistema para conseguir queimar-me a segunda camisa do dia.
Existia na minha vida para me confrontar com os meus complexos de burguesa e a minha incapacidade de domadora de empregadas que sempre rendeu boas anedotas entre os meus amigos.
Despedir Maria Alice nunca chegou a ser seriamente equacionado. Era uma penitência suave que me ensinava aquelas coisas que só se aprendem no confronto com a nossa própria cobardia. Despedir Maria Alice teria implicado a reunião de uma energia que nos últimos seis meses nunca chegou comigo a casa.
Inicialmente este desaparecimento deixou-me aliviada.
Mas Maria Alice, como todos os seres humanos, tinha uma qualidade. Sabia fazer uma cama em condições. E só quem tem o privilégio de não saber o que é uma insónia é que não percebe o valor de uma cama bem feita.
Passei esta noite, acordada e embrulhada como uma múmia, naquele ninho amarrotado que passou a ser a minha cama depois de eu própria ter trocado os lençóis, a desejar ardentemente o regresso de Maria Alice.

2 comentários:

  1. Como te compreendo.
    Lençois, na minha cama, só depois de bem passados a ferro. E posso até passar um dia inteiro sem fazer a cama, mas não me deito sem esticar devidamente os lençois. Com essa malvada da insónia não se brinca. É que basta-lhe apenas um pequeno pretexto, para a fera atacar com unhas e dentes e deixar marcas profundas.

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  2. Nem me digas... E por falar em unhas, na semana passada tive me levantar às cinco da manhã para cortar as unhas dos pés porque até isso me serviu de pretexto para não conseguir dormir.

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