terça-feira, 6 de abril de 2010

A Senhora da Portagem



Esta manhã sentaste-te no cabeleireiro do teu bairro e durante uma hora e meia fingiste ser uma senhora.
Uma mulher chamada Jurassy armou-te o cabelo como o das estrelas do Dallas que continuam a ser a tua primária referência estética.
Quando estendeste a mão esquerda para que te pintassem as unhas de cor-de-rosa o teu dedo polegar fez deslizar duas vezes a aliança. Aquela em que o teu marido se esqueceu de mandar gravar a data do vosso casamento. E apesar de tu teres prometido que seria a primeira coisa que farias quando voltasses da lua-de-mel na Madeira, nunca o chegaste a fazer.
Hoje fazes quinze anos de casada. Trouxeste para o trabalho o excessivo vestido que usaste na primeira comunhão da tua filha mais nova. Hás-de sair de dentro do teu habitáculo, apanhar boleia do teu colega até ao autocarro, percorrer três quilómetros e vinte paragens. Desembocar directamente na churrasqueira onde já te espera o teu marido.
O teu marido é o homem sentado ao fundo da sala a fumar um SG ventil. Tem as mangas da camisa de flanela arregaçadas. Bebe uma imperial enquanto vigia o telejornal à espera das notícias sobre a bola. Não te comprou um ramo de flores. Mas deu-te trinta euros para que comprasses um presente para ti. Os mesmos que investiste nuns ténis para o teu filho mais velho. Porque os miúdos querem tudo o que vêem nos outros.
Vais-te esquecer de lhe dar um beijo antes de te sentares na sua frente. Hão-de comer um frango entre os dois e evitar o prato das azeitonas. Para fugir ao constrangimento do silêncio de quem nada tem para dizer, ele vai-te perguntar o que compraste para ti. Hás-de mentir, apresentando-lhe os brincos de bijutaria que a tua irmã te deu pelo Natal e que estás farta de usar na sua presença. Ele não ouvirá a tua resposta.
Um minuto antes de te levantares da mesa e entrares no Volkswagen Polo do teu marido, voltarás a fazer a aliança deslizar duas vezes sobre o teu dedo. Não foi isto que imaginaste quando esta manhã investiste no cabelo, nas unhas e no vestido. Também não foi isto que imaginaste quando há quinze anos atrás investiste no cabelo, nas unhas e no vestido. Mas este último pensamento jamais atravessará a tua consciência.
Por ora, no instante em que me devolves o cartão multibanco embrulhado na factura da portagem, és uma mulher poderosa. No teu penteado de Sue Ellen, nas tuas unhas de Pamela, no teu vestido de festa, nos teus projectos de telenovela.
São sinceros os teus desejos de boa viagem e é sincero o meu agradecimento. E se não te olho nos olhos é apenas por medo que o teu poder se desvaneça diante da tua imagem reflectida pela minha visão.

4 comentários:

  1. Muito bom. Se quiseres ver o ponto de vista do homem, lê a crónica do José Manuel dos Santos, publicada na ultima edição da Actual (Expresso) e que se chama cansaço.

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  2. Bem feita para ela. Bem feita para ele.
    De mais ninguém é a culpa.

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  3. S.A.: Obrigada.

    Medusa: A questão é que talvez ela não saiba que pode haver uma "culpa".

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  4. Cuca: se é assim, ela será mais feliz que muita gente.

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