Voltou o vento sueste e a sua energia louca que se entranha pelas frinchas das portas, pelos buracos das fechaduras, pelos ralos do chão e se espalha à nossa volta e nos sobe à cabeça, enlouquecendo-nos também.
Voltaste tu, que foste o meu louco de estimação, companheiro de asilo mental, bússola avariada a indicar o falso sul e que agora és apenas um morto.
Esta manhã acordei com o teu sorriso estampado no meu próprio rosto e soube, ainda antes de abrir as portadas, soube, ainda antes mesmo de abrir os olhos, que o vento que enlouquece regressou a esta terra.
A última vez foi há um ano. Instalou-se durante três dias e quase nos levou a todos à falência moral. E quando se foi embora deixou-nos embrulhados num rasto de destruição que perdura até hoje.
É a nódoa do tapete persa que a dona da casa procura esconder estendendo o pé.
Levei para a rua o teu sorriso de louco e passei o dia a usá-lo com o orgulho de quem exibe as jóias herdadas da avó.
Disseram-me que me fica bem. Ou talvez tenham apenas perguntado se queria um café. O vento aloja-se nos tímpanos e faz-nos confundir as sílabas. Queremos dizer bom dia mas impõe-se-nos o final de um verso de Herberto e respondem-nos com as notas de uma ópera de Puccini.
No ano passado foi pior. No final do primeiro dia já tinha espalhado querosene pelas tábuas desse quarto que é a dignidade e atirado ao chão a beata acesa do cigarro.
Há cinzas por baixo do tapete que fica por baixo da nódoa. Mas o pé da dona da casa esconde tudo.
Até a dominar a loucura a experiência ensina a quem não tem outro préstimo que não seja aprender lições.
Sirvo-me do vento dos doidos para te ter junto de mim enquanto durar o pretexto civilizado.
Estás aqui sentado na minha frente, com um sorriso igual ao meu, a rir do desastre da minha existência. Dizes-me que poderia ter tido tudo se não insistisse tanto em provar que consigo viver sem nada.
Não resisto a acusar-te de nem sequer teres conseguido sobreviver.
Antecipo-te o repúdio pela nostalgia de folhetim e faço-te desaparecer.
Mas se não te estivesse a ver, hoje, cometeria esse pecado de pobre que é beijar nos olhos as fotografias dos mortos.
Antes que te diga que tenho saudades tuas, prometes-me que me seguras a mão até que também o vento dos loucos vá embora.
E eu continuo a usar o teu sorriso.
Um sorriso é uma lufada de ar fresco e se o vento é louco, pois que venha a loucura que faz dançar á chuva, bailar no ar, abrir as portadas á felicidade que espera que as inibições da alma caiam por terra e amem o amor, nem que seja o louco , o que não é terreno nem corpóreo, mas é o que nos ama de volta na mesma medida. Que o vento tenha a loucura de mil tornados de chuva límpida que lavem o pó e a cinza que teimosamente continuamos a esconder como fetiche privado, porque nos negamos a alegria de experimentar felicidades.
ResponderEliminar(Aí, Cuca, quando eu começo, a meio já me perdi... )