quinta-feira, 31 de maio de 2018

Das leis

Todos deverão obedecer às ordens dadas de forma cortês; o capitão terá uma parte e meia de todas as presas; o patrão, o carpinteiro, o mestre de equipagem e o canhoneiro uma parte e um quatro.
Todos os que procurarem desertar ou esconder seja o que for à confraria serão abandonados em terra com uma medida de  pólvora, uma garrafa de água, uma arma pequena e munições.
Todos os que roubarem seja o que for à confraria ou que apostarem um valor superior a uma piastra serão abandonados em terra ou fuzilados.
Sempre que encontrarmos outro Pirata, quem consignar estes artigos sem o consentimento da nossa confraria sofrerá a punição que o capitão e a confraria julgarem conveniente.
A todos que agredirem outros enquanto os presentes artigos estiverem em vigor será aplicada a lei de Moisés (isto é, quarenta golpes menos um) nas costas nuas.
Todos os que inutilizarem as suas armas, ou fumarem tabaco no porão sem ter posto um resguardo no cachimbo ou que andarem com uma candeia alumiada fora de uma lanterna serão submetidos ao tratamento previsto no artigo anterior.
Todos os que não tiverem as suas armas prontas a servir, ou que não comparecerem no seu posto, serão privados da sua parte e sofrerão o castigo que o capitão e a confraria julguem convenientes.
Todos os que perderem uma articulação nos combates, receberão quatrocentas piastras. Se for um membro, oitocentas. 
Se em qualquer momento nos encontrarmos em presença de uma mulher honesta, todos os que quiserem apoderar-se dela serão imediatamente mortos.


As leis do navio pirata Revenge, segundo Gilles Lapouge, in, Os Piratas. 

41 ladrões

Diz-se pelas ruas de Medina, mas Alá tudo vê e é quem mais sabe, que a história de Ali Babá e os 40 ladrões nos foi mal contada. Diz-se que, quando Ali chegou à gruta e se escondeu nas sombras para aprender dos lábios dos ladrões a frase mágica, que quando depois de cada um dos ladrões sair e os ter contado repetiu as palavras, que quando a porta se abriu a na sua frente se estendeu uma ampla e vasta gruta, Ali não encontrou se não o vazio e o eco da sua desilusão. Não havia uma única moeda, pérola, pedra preciosa, bago de ouro ou lágrima de prata. Não havia nada. As grutas frequentadas por ladrões, tal como sucede com alguns corações, tendem a ser meras câmaras de ecos desiludidos. Esta versão da história satisfaz-me mais. Por um lado, os bons ladroes, já se sabe, não deixam nada à sua passagem. Por outro, o justo prémio para o ladrão que chega em quadragésimo primeiro lugar e aspira ao tesouro dos outros é ficar trancado numa gruta a ouvir perpetuamente os ecos da sua desilusão.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Tua cantiga


Se o teu vigia se alvoroçar 
E estrada fora te conduzir 
Basta soprar meu nome 
com teu perfume
Para me atrair 

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Pagar para ver

Nós, os Piratas, entre o pragmatismo militante e a barbárie desenvolvemos um estranho apego à verdade.
Gastas que estão as palavras, desvalorizadas que ficam as ações, equívocos que são os gestos, a única forma de chegar à raiz da verdade é pagar para vê-la. 
De todas as vezes que paguei para a ver, e foram demasiadas, nunca o adversário me mostrou uma mão melhor do que a minha.
Coleciono um número incomportável de fichas plásticas de casino e sinto-me terrivelmente empobrecida.  

domingo, 27 de maio de 2018

Misantropia light

Quando finalmente saí de casa preparada para os carrinhos de bebé na feira do livro, eis que as minhas células misantropas se defrontaram com uma nova dificuldade: cães na feira do livro.

diálogo de mudos

«Que linguagem é a tua, ó mar?»
«É a linguagem da eterna pergunta.»
«Que linguagem é a tua resposta, ó céu»
«É a linguagem do eterno silêncio.»

Rabindranath Tagore, in, A Asa e a Luz, Assírio & Alvim

Piratas

E no entanto, não sabemos nada e a biblioteca está vazia. É que a pirataria, embora receba alento da história, só aspira a livrar-se dela. Quando os flibusteiros se fazem ao mar não será que fogem à todo o pano da história? Trocar a terra pelo oceano não é uma decisão insignificante: implica despedir-se da cidade e da sociedade, do discurso do método, do tempo das clepsidras ou dos relógios, das escalas nos portos, do esquadro, da colher de pedreiro e do compasso, das fábricas e dos campos, do código civil e dos arquivos, dos antepassados, das crianças, do passado e do futuro. E pressupõe substituir-se o ambiente em que se nasceu por outros ambientes menos conhecidos: o espaço vazio e circular onde o homem ainda não traçou as suas geometrias e as suas cidades, o indiferenciado, o tempo sem costura da lua e do sol, a paisagem lagunas do início do mundo ou da sua conclusão, o ciclo das estrelas no céu, a roda do eterno recomeço e do Grande Ano. É isso que balbucia a tentação pirata;

Gilles Lapouge, in, Os Piratas, Antigona

Pária do mar

O amor é apenas um dos mil nomes da guerra. Fizemos a vontade aos Homens: assinámos o armistício. Dividimos o mar em duas incompletas metades e cada um reinou sobre a sua sem jamais olhar os limites da fronteira. Então, livre do espartilho dos sonhos, revelou-se a nossa verdadeira natureza. Tornei-me Pirata. Fizeste-te Pária do mar.

sábado, 26 de maio de 2018

Vida tão estranha



A gente vive na mentira,
já não dá conta do que sente 
Antes sozinha toda a vida 
do que ter 
um coração que mente 

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Da dignidade

Felizes os que sabem aceitar o desprezo com condescendência, porque deles é o reino da dignidade.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Do pragmatismo

Lembrar-nos, lembrar-nos sempre, que, para não lhe enriquecer a morte, depois de enterrar a espada no coração é necessário recuperá-la.

sábado, 12 de maio de 2018

Gostar

Mas o que é gostar, perguntamos nós, entre o muito gostar e o nada gostar está o menos e o pouco, e não chega escrevê-lo para sabermos que partes de sim, de não e de talvez comporta tudo aquilo, seria preciso proferi-lo em voz alta, o ouvido capta a vibração última, capta sempre, e quando nos enganamos ou nos deixamos enganar é só porque não demos ao ouvido ouvidos suficientes.

José Saramago, in, História do Cerco de Lisboa, Porto Editora

Os rapazes não choram


terça-feira, 8 de maio de 2018

Desexílio

Quando, finalmente, os céus me enviaram uma pequena amostra de tempestade de verão, abri a janela para deixar entrar em casa o cheiro do exílio.
Mas, aqui, falta à terra molhada o travo do café.
As noites não têm densidade, não há aurora, as manhãs assumem a cor das tardes.
E esta moínha na alma são saudades do meu exílio.


sexta-feira, 4 de maio de 2018

Anjos

Não sabíamos nem supúnhamos que a vida tivesse peso superior à densidade do ar, ainda que do ar húmido, idêntico ao que se respira no topo da montanha de onde dominámos o mundo.
Ficámos ainda muito tempo depois da guerra dos homens, espreitando-os do nosso jardim de laranjeiras, vendo-os dividir entre si os despojos do ódio e do amor. Não os compreendíamos nem os invejávamos. A imortalidade ainda não nos pesava nas asas.
Quando os Homens se rebelaram contra nós e empenharam a fé em troca da ilusão da liberdade, sobrevieram as trevas e regressámos às cavernas.
Incapazes de morrer, aprendemos, então, a aguardar.
Sabemos que uma manhã um deles há de sonhar-nos, fazendo-nos maiores, mais puros e mais loucos. Voltaremos a espreguiçar-nos ao sol, a atravessar os mares, a comandar os ventos e a desprezar os Homens.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Grandes Filósofos

Só precisamos de uma coisa para estar vivos...
De um coração que bata.
Quando o coração é ameaçado, podemos ter uma de duas reações:
Ou corremos,
Ou atacamos.

De um monólogo da Anatomia de Grey