segunda-feira, 25 de abril de 2022

Liberdade

 

A tua mais irremediável prisão é essa corda que te sai do músculo do coração e junta os pés com as mãos e faz de ti uma pequena trouxa humana no fundo de um velho barco à deriva.

Até já, Ludovico.


 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Breve ensaio sobre a irrelevância do amanhã

Um desses dias do deserto, Tagik, o berbere contador de estórias, no círculo da fogueira que definhava ao vento, aproximou os lábios gretados dos meus ouvidos, e disse-me que todos os amanhãs são uma réplica do dia de hoje. Naqueles dias, como se diz na Bíblia, entre tendas de panos egípcios, chás de menta adocicados com vodka e a falsa promessa de eternidade que há no amanhecer do deserto, não percebi a ameaça contida na premonição.
Hoje, sitiada nesta selva urbana, longe do meu navio, despojada das minhas espadas, exilada no mundo real, percebo na sua plenitude o horror da afirmação. 

sábado, 2 de abril de 2022

A Lua de Ariosto

Ariosto já resolvera, afinal, um dos  mistérios da existência que mais me intrigaram. Onde fica o cemitério dos amores perdidos? Na lua, claro. Nas montanhas da lua encontram-se todas as coisas que na terra nos escorreram pelos dedos das mãos e se perderam para sempre nas faldas do tempo. 
Posso até imaginar, enterrado nas areias de um deserto lunar, um contentor com tampa de jade e a inscrição do meu nome. 
E lá dentro: 
A breve memória de um olhar que perdi na alba; centenas de brincos sem par; dois anéis importantes; muitas horas de paciência; uma larga porção de tempo; duas ou três amizades que estavam destinadas a ser para a vida; vinte e cinco contos originais; a boneca Carole, há tantas luas ida que já nem sei se é perda própria; um lenço caído no chão da Bretanha; o conteúdo integral de tantos livros que esqueci; uma Ilha inteira, com as suas pessoas e casas e cheiros e luz. O juízo de alguns dias. 
Dois amores, de grande calibre.
E tu? O que tem a lua de teu? 

segunda-feira, 28 de março de 2022

Onde vão parar as coisas que perdem na terra?

No universo nunca se perde nada. Onde vão parar as coisas que se perdem na terra? À lua. Nos seus vales brancos encontram-se a fama, que não resiste ao tempo, as orações feitas de má fé, as lágrimas e os suspiros dos amantes, o tempo desperdiçado pelos brincalhões. E é la que se conserva, em ampolas seladas, o tino de quem o perdeu, no todo ou em parte. 

Orlando Furioso de Ludovico Ariosto contado por Italo Calvino, Cavalo de Ferro

Silêncios



sábado, 26 de março de 2022

Equinócio

Esta manhã o rio ia cheio no seu leito e já havia magnólias nos canteiros da margem e a brisa fresca cheirava a jasmim. 
Não vi o bando dos corvos marinhos que, suspeito, partiu para outras bandas. Mas vi os patos e as gaivotas e aquilo que me foi dito serem gansos selvagens e é claro que o equinócio, finalmente, levantou-se sobre as todas as criaturas do rio.
Eu também sou uma criatura do rio. Refugiada do mar, estendo as asas nas águas do rio, limpo nelas as minhas escamas e alimento-me da sua vida. 
E também agradeço o equinócio.

quinta-feira, 24 de março de 2022

os anjos não tocam violino

O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.

E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos - amávamo-nos, amávamo-nos - e eu sabia e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.

Que se amem, e se apavorem um do outro - disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.

Temem a loucura um do outro - disse ele - e é isso que se amam.

Depressa, depressa.

Era um crime.

Os anjos não tocam violino.

(...)

In Herberto Helder, Apresentação do Rosto, Porto Editora.

Bohème

E ali estávamos nós de novo na plateia do São Carlos, eu enterrada num vison comprado em segunda mão e roída pela fome, Mimi, já gelada e tuberculosa, a destilar as últimas gotas da sua paixão, Rodolfo a banhar-se na mais comovente onda de negação e outra vez o mesmo pensamento, aquele que sempre me assalta nestes momentos de extrema tragédia: mas porque é que na ópera as pessoas demoram tanto tempo a morrer? 

quarta-feira, 23 de março de 2022

breve síntese dos dias que não contei

Ainda me impressiona a chuva triste que se cola às costas das mãos e que não se consegue sacudir com um gesto impaciente. 

Ainda me assusta o olhar delator dos loucos quando se cruza com o meu e reage com a efusão de quem encontra um amigo num mercado chinês.

Ainda detesto a nostalgia do pôr-do-sol e das flores que murcham nas jarras e do musgo nas lápides sob a última luz da tarde.

Ainda sonho que sigo um coelho e me perco no subterrâneo surrealista das coisas bonitas e fascinantes onde Alice e a Rainha de Copas são as duas faces do espelho.

Ainda trago no peito a mancha escura da memória dos dias em que não fui feliz todos os dias.