Deixou hoje o navio o meu ex senhorio, Israelita da Mossad, disfarçado de pacato jovem alentejano da Planície, com quem as coisas nunca são aquilo que parecem, como é timbre natural e indispensável nos membros das organizações secretas que se passeiam por Portugal e ocasionalmente se instalam no litoral alentejano.
Chegou há um ano com a missão assumida de me fazer retornar à Planície e com uma intenção oculta de cariz tão secreto que nunca consegui perceber qual era.
Embora o tenha desenganado imediatamente quanto à viabilidade dos seus propósitos, já que encontrei na Pirataria a minha verdadeira vocação natural, o rapaz foi ficando, primeiro, com uma sucessão infindável de pretextos, depois, sem qualquer justificação, aproveitando-se abusivamente do facto de me esquecer de as exigir.
A sua estadia foi profícua. Além de coautor de dois ou três planos geniais para assaltar petroleiros (ultimamente especializámos-nos nesta área de, vá, como dizer, negócio) foi o meu par em todas os bailes que fizemos no navio, aproveitando aqui para deixar uma nota claramente positiva a respeito da formação dos agentes da Mossad em tango.
Despedi-me dele ao início da manhã que, de repente e apesar da carência de nuvens no céu, pareceu-me despropositadamente nebulosa.
- Promete-me que me vais visitar à planície.
- Estou farta de o avisar que não me deve tratar por tu.
- Não é por mim, é pelos velhos da praça que sentem a tua falta nos jogos de sueca.
- Admita que só quer que eu volte porque o meu regresso satisfaz os propósitos da sua organização...
- Organização?? Outra vez essa conversa? Eu não sou lá muito organizado. Mas isso de satisfazer, bem... daquela vez em que...
- Não seja tonto! E é melhor que vá rapidamente, que bem sabe como odeio despedidas.
Enquanto o vi sair do navio montado no seu cavalo branco e afastar-se no mar até ser apenas um indecifrável ponto na linha do horizonte, lembrei-me de como, da primeira vez que o vi naqueles preparos, o confundi com um príncipe da Disney.
No dia em que abandonei a planície fingi esquecer-me, na estante que foi minha, de uma boneca sentada.
Antes de partir, disse-me que a boneca que lhe deixei para que não me esquecesse, continuava sentada, à minha espera.
Respondi-lhe que um dia voltarei para a recuperar.
Ambos sabemos que é apenas uma daquelas mentiras que são tristes porque todos queríamos que fossem verdade.
Nunca voltarei à planície. Como também nunca voltarei à minha Ilha. Como se diz por aí, e se se diz por aí é porque é necessariamente verdade, nunca se deve regressar ao sítio onde se foi feliz.
Em contrapartida, terei sempre Lisboa. Essa cidade que tão continuamente me sabe fazer miserável.