quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

...


Aos Amigos 

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, 
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente 
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Helder, Poemas Completos

2014, a síntese


Faltam menos de vinte e quatro horas para acabar o ano e ainda não fiz nada de que me envergonhe.
Foi um ano muito bom.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pequeno apontamento novo-burguês na terceira pessoa

Cuca, após aturada ponderação que envolveu um afastamento deliberado da Avenida da Liberdade e um processo de autoconvencimento assente no conceito "eu mereço", já previamente identificado como prólogo de todas as suas grandes asneiras, decidiu comprar uma mala Gucci. Daquelas pretas com umas riscas, encarnada e verde.
Já na loja, com a mala na mão, foi acometida por uma inesperada e inexplicável sensação desagradável, provocada pelo objeto. Confundiu a sensação com a reminiscência de uma consciência social latente, mas muito latente, e esqueceu o assunto.
Hoje de manhã Cuca decidiu sair para passear o cão e levou consigo a mala nova.
Uns metros à frente da porta de casa foi interpelada por um cidadão de origem paquistanesa, técnico de limpeza na câmara municipal de Lisboa, que abandonou o carrinho com o balde e as vassouras para se vir queixar da greve da TAP e dos seus efeitos nefastos sobre os planos de viagem da sua mulher e de como por causa disso vai passar sozinho o final de ano.
Cuca explicou que nada sabe sobre isso, que não percebe a abordagem e que é melhor perguntar a alguém da TAP. 
O cidadão, estrangeiro mas muito conhecedor dos detalhes e insígnias da companhia de aviação nacional, faz um ar desconfiado e pergunta a Cuca se, afinal, não é hospedeira da TAP.
Cuca, ainda sem perceber e tentando esconder uma certa frustração pelo facto da sua altura ter impedido uma fulgurante carreira como hospedeira, explica que não, que infelizmente não trabalha na TAP.
Então, o cidadão de origem paquistanesa, redobrando desconfiança, pergunta:
- Se não és hospedeira o que andas a fazer com uma mala da TAP?
Moral: vende-se Gucci.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Your dreams are possible

"Your dreams are possible" diz-me uma mensagem da Adobe, enquanto me preparo para escrever um post sobre a aranha que vi desenhada no guarda lamas de um carro.
Não sei em que se baseia a gratuita garantia. Talvez uma forma possível de legitimar as expetativas fosse transformá-las em código, dando-as a ler a um programa informático que se desse ao incómodo de analisar todas as variantes estatísticas. Um dia poderemos ajustar os nossos sonhos às suas possibilidades de concretização e viver vidas do tom do cinzento dos monitores desligados, perfeitamente higienizadas de frustração. Seremos asseticamente tranquilos. Continuaremos a não saber o que é a felicidade mas também não conheceremos o desespero.
Até lá, podemos sempre contar com o otimismo da Adobe. 
"Your dreams are possible", dizem eles confiando, mais do que nas infinitas possibilidades da vida, na nossa capacidade de autolimitação dos sonhos.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Há sempre qualquer coisa errada com toda a gente

 Com a próxima pessoa adequada com que estás a conversar descontraidamente, paras repentinamente a meio da conversa e olhas de perto para ela e perguntas-lhes: "o que é que se passa?" Dizes isso com um tom preocupado. A pessoa pergunta: "o que é que queres dizer com isso?" E tu respondes: "Há qualquer coisa que não está bem. Já reparei? O que é?" E ela fica estupefacta e pergunta: "Como é que percebeste?" Não se dá conta que há sempre qualquer coisa errada com toda a gente. Muitas vezes, mais do que uma coisa. Não sabe que toda a gente anda sempre por aí às voltas com qualquer coisa errada e convencida de que tem grande força de vontade e controlo para não deixar que os outros, que julga que nunca têm problemas, vejam. As pessoas são assim mesmo. Pergunta-lhes de repente qual é o problema e quer se abram e despejem o coração quer neguem e finjam que tu é que não estás bem, vão pensar que és perspicaz e compreensivo. Vão ficar gratas ou assustadas e evitar-te a partir dessa altura. 

David Foster Wallace, O Rei Pálido, Quetzal

Darwin explica

Os seres humanos, ao cair de uma escada não amparam o peso nas unhas, arrancando-as.
Foi uma falha dos mecanismos instintivos de sobrevivência na queda.
Uma falha, só agora o percebo, que revela um sintoma. Recorrente e explicativo.

Blues

We never seem to find peace of mind
We are always on the run away from the sun
And we have only just begun 

You say we have overcome, nothing is wrong
You say our job is done, battle is won
But we have only just begun.

Não são blues, são fados

Cumpro escrupulosamente a promessa de te esquecer. Há anos que a cumpro, esquecendo-me de ti todos os dias um pouco e fazendo-o ainda melhor no dia seguinte. Cumpro-a tão bem que já não saberia dizer a sensação dos teus cabelos entre os meus dedos, ou a expressão do teu olhar quando fixo no meu, ou o ligeiro encurvar da sobrancelha direita na tua fraca imitação do meu ar de amuo. Cumpro-a tão perfeitamente que já não me lembro do teu andar dançado; de nenhum sinal de nascença na omoplata esquerda; do ângulo de inclinação dos pés egípcios; do timbre musicado na pronúncia da segunda consoante do meu nome; do dedo anelar a eliminar da têmpora um pensamento insistente. E nem sequer me ocorre a tua duplicada interjeição de espanto, a forma amendoada das pálpebras adormecidas ou a pressão exata da tua mão na minha.
Porque todas estas coisas que agora percebo que já não lembro desfizeram-se na permanente, contínua, interminável missão de cumprir a promessa de me esquecer de ti. 


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Das coisas que só algumas pessoas podem ensinar-nos

A propósito de um almoço de quase Natal entre quase amigos e do tempo roubado às coisas que importam verdadeiramente, para fazer aquelas que verdadeiramente importam.

Do quanto passei e vi nada posso ensinar-te senão dizer-te o que vi e o que passei. E do que me disseram, o quanto que posso ensinar-te é o pouco que posso dizer-te, que foi o que me disseram: 
"Não fites a Estrada: segue-a até ao fim."

Fernando Pessoa, O peregrino, in O Mendigo e outros contos, Assírio & Alvim.

Um outro dezembro

Não sei em que dezembro nos perdemos.
Quando deixou o frio de acordar aninhado em laços de seda dourada
e restou este azul cinzento, terrível, da cor das veias,
a descer-nos pelos pés, descalços,
afogados na neve.

Quando se apagou o pavio da vela que foi o sol amplificado nas paredes
e amanhecemos sentados no desolo de um banco de jardim mergulhado na neblina.

E onde antes o eco de um riso,
agora,
apenas o uivo faminto do lobo,

A mastigar a doença que carregamos no fundo dos olhos
enquanto restamos aqui fora,
sentados,
de pés afogados,
à espera de um outro dezembro que nos faça regressar a casa.






quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Boas notícias

Em breve tudo estará ultrapassado.
Lá pelas três da manhã o último carro do lixo terá livrado a cidade dos sacos, caixas e papéis de embrulho.
Então, poderemos voltar a amanhecer disfuncionais,
Discretamente e sem complexos de culpa.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

And its christmas all over the world


Comecei por achar que, sendo ateia e Pirata, por razões de coerência ideológica, deveria evitar escrever mensagens de Natal.
Mas depois pensei melhor e ocorreu-me que o Natal é muito mais sobre a magia do que sobre o nascimento de Cristo. 
Decidi então aproveitar a imunidade ocasional que o espírito da quadra concede a um outro laivo de sentimentalismo para agradecer. 
Num mundo em que o tempo é senhor e nós escravos, nunca deixarão de me surpreender as pessoas que doam as suas horas a esta coisa da blogosfera.
Daqui, deste navio em deriva controlada pelos mares do sul do mundo, desejo a todos - autores, comentadores e leitores - que contribuem para esta estranha forma de magia, um Natal cheio de poesia. 

Onde pertencemos

(...)
Love lift us up where we belong
Where the eagles cry
On a mountain high
Love lift us up where we belong
Far from the world we know
Where the clear wind blows
Time goes by, no time to cry
Life's you and I, a life today
Love lift us up where we belong
Where the eagles cry
On a mountain high
(...)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Post sobre o Natal

Esta manhã, o sem abrigo da minha rua perguntou-me se não lhe queria dar uma moeda pois não. E eu respondi que não claro que não obrigada. E depois olhámos um para o outro e foi como se ele tivesse apenas pretendido oferecer-me uma oportunidade e como se eu a tivesse declinado. 

domingo, 21 de dezembro de 2014

O que farás com a memória do meu abraço?


Talvez uma lareira e seguramente uma mesa grande, escondida sob a toalha encarnada. A louça será branca e sobrevivente de, pelo menos, duas gerações. Há anjos dourados. Ou nas argolas dos guardanapos, ou nas velas que ardem sobre a mesa ou pendurados nas ombreiras das portas. O vinho será tinto. Não sei se bacalhau, se peru, se ambos. Os risos serão sinceros e quentes e também se ouvirão, em cântico, as omnipresentes vozes das crianças.
E entre esse coro do coração, quieta, séria e deslocada, a memória do abraço que, por não teres onde a deixar, levaste contigo para esta consoada. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O bolero dos surdos


Mantinham uma relação tripartida em simétricos e perfeitos terços de amor, respeito e raiva. 
Sabiam que estavam juntos há muitas vidas. As células têm uma memória desenganada que se desprende do fio da razão. Paradoxalmente, nenhum dos dois acreditava nas múltiplas possibilidades da reencarnacão dos homens. 
O estranho equilíbrio instalava o lar na convicção de uma existência anterior destruída pela mão do outro. 
Amavam-se com desconfiança. Era um jogo de vida ou morte.
Um dia, cumpririam as suas sortes de mútua aniquilação. Até que não restasse um rasgo de pele.
E depois voltariam à terra, à mesma margem de um rio cansado, perpetuando esse tango infinito de rosas cuspidas e facas apontadas. 
Ao coração.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Lamento

Há sentimentos feitos da sensação da areia entre os dentes, do frio da lâmina da adaga junto ao peito, do sol do meio dia nas dunas do deserto. E para esses, há a poesia árabe.

Lamento

Depois de Roma ter ardido 
e de tu teres ardido com ela 
não esperes de mim 
que te escreva um poema para te chorar 
eu não estou acostumado 
A chorar pássaros mortos 

Nizâr Qabbânî, tradução de André Simões, retirado daqui.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Castelos no ar

Em O Construtor Solness, de Ibsen, uma jovem rapariguinha, Hilde, e um homem mais velho e casado, Solness, apaixonam-se. 
Sem saberem o que fazer um com o outro, são momentaneamente salvos pela ideia de Hilde, boa moça mas com um evidente problema de fracas expectativas: 

SOLNESS (...) Mas diga-me lá o que é! O que é o mais maravilhoso do mundo e que nós vamos construir juntos?
HILDE (fica um momento calada e depôs diz com uma expressão indefinida no olhar) Castelos nos ar.
SOLNESS Castelos no ar?
HILDE (acena que sim com a cabeça) Castelos no ar, sim! Tem uma ideia do que é um castelo no ar? 
SOLNESS É o que há no mundo de mais maravilhoso, como a menina diz.
HILDE (levanta-se de repente e faz um gesto de rejeição com a mão) Sim, pois claro! Castelos no ar são fáceis de esconder! E fáceis de construir também ... (Olha para ele com desprezo) ... Sobretudo para os construtores que têm uma consciência que sofre de vertigens.
SOLNESS (levanta-se) De hoje em diante vamos construir juntos, Hilde. 

Mas ao menos nas peças de Ibsen os construtores de castelos no ar de consciência vertiginosa acabam sempre mal. No final, ela convence-o a subir a uma torre pelo capricho de o ver mais alto do que todos os outro homens. Ele cai e morre. 
Os instigadores, aparentemente, não são punidos. 





A quadragésima primeira vítima


Neste ano, em Portugal, já morreram 40 mulheres assassinadas por maridos e ex maridos.
Conheces os números e não te provocam nenhum arrepio pela espinha acima. Até te admiras que não sejam mais. Não por insensibilidade, que não és de desejar o mal das outras, mas porque há um terrível conforto na banalização do drama, que alivia a carga da culpa que tomas de empréstimo. 
Chamas-de Deolinda, Maria, Shirley ou Constança. Tens um ou quatro apelidos e tanto vives numa aldeia do interior, como num t1 apertado na Brandoa, ou num duplex nas Amoreiras. Por esta altura, já te ocorreu a possibilidade de um dia morreres pela mão de quem julgas amar. A experiência ensina as fragilidades do corpo humano e se há quatro meses ele não tivesse tido aquilo que confundes com um laivo de bondade e que o fez deixar de te apertar o pescoço quando as pernas já te fraquejavam, ou se a sorte não tivesse afastado de ti, na semana passada, aquela esquina da parede, o teu corpo já teria desistido. 
Não tens medo de morrer. Nalgum ponto da tua existência convenceste-te que é uma forma natural, talvez a única, de libertação. Entregas pois ao corpo a capacidade de resistência já que a alma está há muito desmaiada. A violência faz parte da dinâmica daquilo a que ainda chamas amor e no teu delírio as ondas de violência e humilhação a que te sujeitas são um segredo que vos aproxima e vos faz, aos dois, cúmplices do mesmo crime. 
É por isso, mais do que por vergonha, que quando te perguntavam no emprego pelas mazelas no rosto, inventavas respostas que já sabias colherem apenas encolheres de ombros e resmungos de tu lá sabes. Chegaste a gritar em desespero, na cara não, mas foi inútil. E agora já nem sequer perguntam. Por fim, também as tuas feridas se tornaram invisíveis. 
Não foi sempre assim, nunca é. Em tempos orgulhaste-te da sensação de lhe pertenceres e foram felizes por dois meses ou dois anos. Mas isso foi antes do vinho, ou do mau feitio, ou dos ciúmes, ou dos nervos, ou do stress profissional. Depois, as indisposições dele foram a espiral crescente que agora ocupa todas as divisões da casa e para as quais contribuis com o simples facto de existires. Já foste à bruxa e lavaste a porta da casa com vinagre ou à livraria onde compraste os livros de auto ajuda que leste às escondidas. À falta de outra coisa tens esperança. 
Não te vais embora porque achas que não vales a pena. Mas colecionas falsas justificações que tanto podem ser o dinheiro, a casa, os teus pais ou os teus filhos. 
Tens no quarto uma fotografia do vosso casamento ou de um fim de tarde na praia em que alguém congelou a expressão apaixonada que te serve de prova de que não foi sempre assim.
Com sorte, é essa fotografia a última coisa que verás na tua vida. Quando o vinho, o mau feitio, os ciúmes, os nervos ou o stress profissional do teu marido forem a faca que te espeta no peito, a arma que te dispara na cabeça ou as mãos com que te estrangula o pescoço, verás a tua própria expressão de outros dias, plasmada num retângulo de celulóide, e lerás nela a terrível acusação por nada teres feito para te salvares.
Se tiveres azar, essa mesma acusação estará nos olhos dos teus filhos, testemunhas da vossa cumplicidade no crime.
Não queiras ser a quadragésima primeira vítima e ir passar o Natal à terra. 
Queixa-te.

(Fotografia tirada da internet de autoria desconhecida)


sábado, 13 de dezembro de 2014

Na dúvida, obedecer apenas ao que nos convém


(....)mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor,o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades.

Êxodo 20:10

Não me responsabilizo pelos demais pecadores deste reino cujos gestos,  muito provavelmente, são responsáveis pelo mau tempo que uma qualquer criatura divina de instintos vingativos e pérfidos nos enviou com finalidades fustigadoras. 
Eu e o meu cão obedeceremos com gosto e não tencionamos fazer trabalho algum até que o sábado e respetiva sombra se extingam por completo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Diário de Bordo

Tal como era previsível, a pobreza voluntária a que nos submeti depois de transformar todas as nossas riquezas em dólares e ir para Nova Iorque cumprir a heróica missão de gastar tudo, teve a virtualidade de nos libertar dos insuportáveis vícios burgueses que já ameaçavam afastar-nos da nossa principal razão de ser que, entre tantos banhos de sol no convés, sessões cinematográficas, greves e jantares gourmet, convém lembrar, é aterrorizar o mundo e dominar os mares.
Reunimos-nos ontem para comemorar o dia internacional dos direitos do homem, coisa para a qual nos estamos todas nas tintas, afinal somos Piratas, mas que comemoramos na mesma para exercitar o cinismo e a hipocrisia e para angariar atenuantes para o improvável caso de um dia virmos a ser julgados pelos nossos crimes. 
Fizemos um arraial no convés com aquelas luzes das festas do Santo António de Lisboa, em que não faltaram manjericos e sardinhas assadas e nem sequer uma marcha popular horrivelmente cantada pelo Álvaro de Campos, o engenheiro. Por ele teria cantado outras vinte, mas os tripulantes ex presidiários, por razões que não imagino quais sejam, exercem sobre ele o estranho poder da neutralização através de um simples olhar de relance. Espero que não andem a violar direitos humanos. 
Poder-se-ia estranhar a forma escolhida para a comemoração, já que estamos em dezembro e não em junho, mas a verdade é que nessa altura, ainda esmagados pelo peso da riqueza, estávamos demasiado apegados ao nosso estatuto "noveau riche" para nos podermos dar ao luxo de um divertimento que na sua designação inclui a palavra "popular". Também por isso, fiz muito bem em esvaziar os cofres e obrigar-nos a todos à pobreza.
É uma pena que a minha tripulação não partilhe das minhas qualidades visionárias e mantenha uma irritante atitude de cobrança e amuo perante a drástica alteração no nosso estilo de vida, insistindo em incompreensíveis e ultrapassados conceitos capitalistas vagamente relacionados com a acusação de também ter gasto o dinheiro dos outros. No entanto, já disse alguém que agora não sei quem foi mas que poderia ter sido meu amigo, que o poder é um lugar muito solitário.
Claro que os custos da festa de comemoração do dia internacional dos direitos do homem nos levaram o que sobrava para os festejos do Natal. Confrontada com esse problema demorei exatamente dois segundos a encontrar a solução evidente: 
Pois se não temos dinheiro para o bacalhau, assaltemos um bacalhoeiro!



Estados de espírito


Este Natal não abandone o seu blogue

Os blogues abandonados suscitam-me uma nostalgia semelhante àquela que imagino resultar de um passeio de domingo à tarde por um cemitério de aldeia. 
Deixo aqui o meu protesto pela licença sabática do Xilre que, estou certa, não foi autorizada por ninguém. Além do mais, três dias é tempo suficiente para refletir sobre todos os quadrantes do universo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

E se tu não existisses


Et si tu n'existais pasDis-moi pourquoi j'existeraisPour traîner dans un monde sans toiSans espoir et sans regret
Et si tu n'existais pasJ'essaierais d'inventer l'amourComme un peintre qui voit sous ses doigtsNaître les couleurs du jourEt qui n'en revient pas(...)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

É preciso lembrá-lo todos os dias

A violência que nos rodeia parece extrema, mas na realidade vivemos vidas seguras, com pouco crime a atingir cada pessoa. Aliás, nunca se viveu com tanta segurança. Como diz um dos autores citados, Ian Morris, sacar de uma arma num bar tem sérias consequências. Em comparação com o passado, as pessoas de hoje nunca estiveram tão bem alimentadas, o grau de instrução da maioria é inédito e o indivíduo mais banal tem direito à justiça. As sociedades avançadas são democráticas e os cidadãos gozam de amplas liberdades. A saúde e a longevidade não têm paralelo com o que acontecia nas gerações anteriores e, no entanto, um pequeno surto de doença pode provocar um pânico. À luz de tantos indícios contrários, o pessimismo contemporâneo é quase incompreensível. Os nossos antepassados tinham vidas curtas, perigosas e sem grande esperança. Nós, pelo contrário, vivemos numa época em que as maiores incertezas são sobre a próxima ruptura tecnológica. E, no entanto, muitos julgam que o amanhã pode não ter aurora, torna-se até difícil defender o contrário, pois isso é considerado optimismo, sinónimo de imbecilidade e loucura.
In, Fragmentário, Luís Naves

Esse resto de dignidade

Atirei à terra esse resto de dignidade.
A terra foi generosa. Floresceu um bosque cerrado.
Onde lenhador nenhum poderá entrar.

I Know places

Quando me perguntaram onde queria mesmo estar, lembrei-me do gesto matinal de abrir uma pesada janela branca com vista para um pasto que se estende até ao mar. E de um mundo desenhado a verde e a cinzento. Um verde e um cinzento que não voltarei a ver em qualquer outro canto do universo. Lembrei-me de ganhar intermináveis horas com os olhos pousados nos movimentos lentos de um barco de pesca. Contei todos os por-do-sol a que assisti e foram tantos. Lembrei-me da lua a dançar sobre a  areia da praia que ia sendo engolida pelo mar até só ficarem as pedras cinzentas. E do som das ondas na escuridão daquelas noites que os homens se esqueceram de iluminar. Pensei na varanda onde nos sentávamos para assistir a Orion e sentíamos as constelações como uma aventura cinematográfica. E no cheiro da terra depois da chuva que caia sempre à mesma hora. E na lentidão dos gestos em que fervíamos o amor. Como se o cozinhássemos no forno grande da cozinha de pedra, em cuja chaminé os pássaros vieram fazer o ninho. 
Depois respondi que queria mesmo estar em Nova Iorque, no terraço do mais alto dos arranha céus. 
Talvez não tenha mentido. Não há nenhum sentido em querer estar-se no sítio de onde nunca se conseguiu sair.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014