terça-feira, 6 de abril de 2021

Contou-me a lua

Contou-me a lua que as sombras amanheceram riso
E dissiparam-se nas bolas de sabão que se elevaram
Na sétima onda do mar

Os peixes sentaram-se na areia
Sob um céu de nuvens rosa 
Para me ensinar a amar

Contou-me a lua que as noites amanheceram dias 
E eternizaram-se nos acordes da guitarra
que se elevaram
na sétima onda do mar

Os nossos pés nus na areia,  
A minha mão  dentro da tua 
Para me ensinares a amar

Contou-me a lua que com a ponta dos dedos 
Desenhaste na minha alma 
Um amor maior que os medos.




quinta-feira, 25 de março de 2021

Funeral Blues




De manhã comprámos margaridas. 
Pela tarde plantámo-las no canteiro grande do jardim. 
À noite morreu Kierkegaard, o cão Pirata.
Morremos de faces encostadas e pata na mão, como se deve morrer no amor e na guerra. 
Morremos ambos, porque uma parte de mim morreu com ele. Talvez a melhor. Os livros nada ensinam sobre o sofrimento que é perder um cão e os amigos distraídos levantam o sobrolho e dizem “mas calma, é só um cão”.
Mas não é só um cão. 
É Kierkegaard, o cão Pirata. Testemunha de significativa parte da minha vida. Companheiro de aventuras. Inimigo do leão que surge no início dos filmes da MGM; do secador de cabelo; do aspirador; dos limpa-parabrisas; da chuva e de todos os jardineiros deste mundo. 
Cão melómano, fã de Puccini e da Madame Butterfly. Ouvinte dedicado das minhas tardes de piano, junto do qual gostava de se deitar, para depois levantar a cabeça em protesto aquando das falhas mais críticas. 
Feroz guarda da porta para onde corria, com as unhas sempre demasiado compridas, a baterem de encontro ao soalho. 
Parceiro de sofá e aquecedor biológico nos dias mais frios. 
Patrão, escravo e amigo. 
Quase de certeza, a minha única relação verdadeiramente desinteressada. 
A casa aumentou de tamanho. 
O silêncio é uma noite contínua.
O meu colo ficou vazio. 
Sou uma mulher-sem-cão.
Morreu Kierkegaard, o cão Pirata! 
Batam em latas ou mandem tocar todos os sinos de todas as igrejas.
 Morreu o meu melhor amigo!

terça-feira, 2 de março de 2021

Dois anos e seis meses

Há exatamente dois anos e seis meses começou a contar-me uma estória que interrompe todas as noites, na hora de dormir. Não há nada mais importante na vida do que um bom contador de estórias. 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

E absolvições


Condenações


Carnival

O que me impressionou, ao longo dos seis quilómetros que percorri junto ao rio nesta manhã de carnaval, foi a obliteração dos sonhos. Nenhuma fada, nenhuma rainha, nenhuma princesa, nem sequer uma única bruxa. Nenhum pirata, nenhum super herói, nenhum cowboy, nem sequer um palhaço. Vi uma única criança mascarada. Vestiram-na de velha, retratada na miopia de uns óculos de aros pretos, vestido de flores e colar de pérolas e um manto preto apoiado no respetivo cajado. A única família que passeou uma criança mascarada, encerrou-a num traje de velha deprimida. À falta de flores, borboletas, criaturas mitológicas e salvadores do mundo, ocorreu-me que a magia foi salva do outro lado do espelho. Como na canção do Chico Buarque, haverá talvez, escondido, numa qualquer parte do mundo, um país onde se refugiaram os sonhos. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Das manhãs da normalidade possível

O dia nasceu sob o signo do sol. Parecendo que não, é uma variável relevante. 
Hoje comprei uma couve e uns tomates no mini mercado da esquina e regressei a casa com eles, dentro de uns sacos transparentes, para fazer o almoço. 
Pode haver alguma felicidade nisso de se escolher uns tomates maduros, com rama e tudo, e de os pousar na bancada da cozinha e ficar a pensar que são os tomates ideais para aquilo que queríamos fazer para o almoço. 
Aprendi, entretanto, que a felicidade é mais simples e concreta do que poderíamos imaginar. Já não preciso de encontrar a metáfora perfeita num poema. Uns tomates adequados ao prato têm a mesma aptidão para desencadear no meu cérebro o mecanismo da libertação da serotonina. É uma informação útil. Vidas poderiam ter-se salvo se os seus titulares tivessem aprendido a tirar proveito dos pequenos nadas do universo. Aposto que metade dos suicidas nunca desenvolveu o gosto pela culinária, nem percebeu a energia libertadora que existe entre uma faca e os alimentos crus. 
Depois li uma coisa no Henrique Bento Fialho e lembrei-me do Joe Dassin e passei parte do final da manhã a ouvi-lo na cozinha. 
- E se tu não existisses, pá, porque haveria eu de existir? 
Perguntei ao capitão Strut quando regressou a casa e me surpreendeu na cozinha a esfaquear os tomates do mini mercado. 
O capitão Strut tem o salutar hábito de nunca responder às minhas perguntas estúpidas. Pegou-me na mão e, em silêncio, dançou comigo o resto da música. 
Foi uma boa manhã. 


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Fevereiro

Fevereiro avança 
indiferente aos nossos mortos e moribundos.
A natureza ri-se das dores dos homens 
E dá-lhes, por exemplo, esta inoportuna chuva
de fevereiro.
Os dias não esperam que fechem as feridas dos animais.
Ignoram a ética do luto. 
Caiu fevereiro sobre os nossos mortos e moribundos. 
A chuva assusta as vidraças da janela, 
afoga a papoila que se esforça por nascer,
escorre pela campa do meu último morto e 
enlameia as patas do próximo. 
Há sessenta noites que todos os dias
são regados pela tristeza.
Ensopou o tecido e colou-se aos ossos.
Por vezes, dou por mim a sacudi-los,
no gesto atávico do animal incomodado. 
Se houvesse um raio de sol, 
deitar-me-ia nele,
encostada às paredes da rua, 
com o focinho de encontro ao chão.
Mas não há sol, nem paredes, nem chão.
Só esta chuva triste,
e fevereiro,
e o desrespeito da natureza pelo tempo 
que demoram a sarar, as feridas dos animais.



Hologramas

Fiquei a pensar que talvez  exista 
em todas as imagens, de todas as coisas que compõem o universo e dos seus compositores, um holograma de uma borboleta de asas abertas.
Talvez seja imprescindível encostar o nariz à imagem e afasta-la muito lentamente e fixar o olhar no ponto que é tanto exato quanto irrepetível e misterioso. Perdermo-nos na dose certa de estrabismo, revirar os olhos para dentro, acreditar na existência da borboleta de asas abertas.
É o anti-Aleph. Não o ponto vazio que nos mostra todas as coisas que compõem o universo, mas o ponto cheio que nos mostra o espaço vazio que existe em todas as coisas que compõem o universo. 
Bem sei que o consolo da ideia de uma borboleta de asas abertas no interior das coisas é um holograma. Mas também assim deus e a poesia e ninguém parece especialmente perturbado com isso. 



sábado, 6 de fevereiro de 2021

Confins

Noutros tempos, passei longos dias e ainda mais vastas noites confinada dentro da minha cabeça. O confinamento interior parece-me, de todas as perdas de liberdade, a mais violenta. O cérebro projeta-se, como um hamster histérico, às voltas numa rodinha de plástico. E nós ficamos a girar no interior do brinquedo até que a exaustão nos salve do engodo. Se a loucura não chegar primeiro. 
Para quem foi obrigado a estar fechado dentro da sua própria cabeça, o confinamento sanitário tem a leveza e o arejo de um passeio numa praia vazia. E os tempos de não existência, na sua irrealidade, na sua bizarria, sempre nos trazem o silêncio que pode ser motor de uma qualquer forma de crescimento. 
(pese embora no meu caso, até agora, só o tenha notado nas indesejáveis raízes do cabelo)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

É necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara

Diz Gonçalo M. Tavares, “é necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara”. Antes de nos apagar a cara, a morte escurece-nos o coração. E esse não dispiciendo detalhe, parecendo que não, reforça a urgência da receita. É necessário dançar. É imperioso deixar que a música submeta todos os nossos músculos. Até o do coração. Só a música nos pode salvar. 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A morte do pai

O pai morreu
  e ele, que era duro, endureceu mais.
Informou da existência do cadáver 
  como quem relembra um pormenor.
Amava o pai, mas o coração é assim
(a lei da sobrevivência)
   esconde-se quando o querem matar. 

Gonçalo M Tavares, 1, Relógio D’água.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Mar

“Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people's hats off - then, I account it high time to get to sea as soon as I can.” 
― Herman Melville, Moby-Dick

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Starry Night

Deixei de viver dentro de um livro de poemas, 
algures entre a segunda e a terceira dança. 
Era difícil, 
no espaço entre dois versos, 
unir as mãos e dançar contigo 
todos os acordes do infinito.
Mas quando se aprende a viver
dentro de um livro de poemas,
Amor,
não se retorna à claustrofobia dos espaços.
Sou a habitante discreta de todas as caixas de magia.
Espreito do interior dos espelhos desta casa
E adormeço dentro dos quadros. 
Às vezes navego no veleiro pendurado sobre o piano 
E outras, muitas, quase todas, 
Amanheço no crepúsculo do Van Gogh
que resgatámos de uma noite de Nova Iorque. 
Ancorada nos teus pés, 
deixei de deambular, sonâmbula, 
sob a lua das praias geladas 
e de me pendurar, pelas sombras,
nos mais escuros telhados de lisboa. 
E são teus os dias, as  noites,
Todos os crepúsculos e todas as albas.
Mas quando não souberes de mim,
Amor, 
procura-me nas coisas inanimadas,
para as quais ainda me arrasta
esta estranha sede de magia.




sábado, 16 de janeiro de 2021

Talvez o fim do mundo

Estão nuas as árvores da minha rua. 
Em tempos houve um gaio na floreira da janela. 
Desapareceu quando o tentei subornar com aveia. 
É manhã de sábado e o mundo parece suspenso na imobilidade. São as minhas manhãs preferidas.
Sentada no chão do escritório, velo a estante sem livros novos e lastimo a minha negligência.
Não tenho mais livros para ler e parece que já os não vendem.
O fim do mundo, penso, deve ser qualquer coisa assim. 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

(Temporary Backup) Minuet in D Minor

Estão vinte e seis graus dentro da sala. 
Deitada na chaise long do sofá, com o cão a ressonar encostado à minha perna esquerda, observo a expressão do meu amor enquanto aprende na guitarra o Minuet in D minor. 
Será a música do novo confinamento. 

Tenho saudades dos meus amigos, de passear no Chiado, dos teatros, de ouvir e ver tocar música ao vivo, de jantar em restaurantes, de comer batatas fritas, de aterrar numa cidade desconhecida. Também tenho saudades de abraçar as pessoas de quem gosto, mas sobre isso escolho não pensar. 
Sei que a minha gaiola é dourada e tem vista para o Tejo. 
Esse que corre indiferente à angústia das margens e ensina a lição que eu preciso aprender. 
Correr indiferente à angústia das margens e agradecer o Minuet in D minor; estes vinte e seis graus e os dedos do meu amor na guitarra.



segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Medicamentos do coração

Sofri suficientes desgostos de amor para conhecer de cor cada um dos degraus de pedra de que são feitas as minhas escadas de Kubler-Ross. São altas e retorcidas. Enquanto rastejava por elas, acima ou abaixo, consoante a época do ano, a incidência da luz e os períodos de recessão ou progressão, tive oportunidade de aprender o equivalente a todo um curso superior de geologia. 
Sei muitas coisas sobre corações partidos e ainda mais coisas sobre a alquimia das substâncias que compõem a cola capaz de os endireitar. Experimentei a hiperatividade; a inércia; o áudiolivro do Melville e a sua baleia branca; todos os Jane Austen; a tradução de poemas ingleses; o estudo dos árabes; as festas e a eremitagem. Nunca acreditei no poder curativo do amor, talvez por, antes, ter sido esse mesmo a fonte da doença e eu saber há muitos anos que o que é parte do problema jamais pode ser parte da solução.
Finalmente, tive o meu primeiro desgosto que não foi de amor. Aprendi que quando não é de amor, é só de dor. Tudo o mais é basicamente igual, pois a infelicidade é monocromaticamente aborrecida e as lágrimas sabem sempre ao mesmo. 
Quando o desgosto não é de amor, sei-o agora, o amor é cura e antídoto. 
Passei os últimos dias embrulhada no silêncio da natureza e nos braços do meu amor, com o tempo suspenso na lenta espera da cicatrização dos tecidos. 
O amor, fiquem sabendo, é um corticóide de ação rápida. 

How much do you love me