quarta-feira, 17 de junho de 2020

Céus


Do flexiban

Dois comprimidos mais tarde, deitada de costas na cama, numa penumbra de sesta, vigiada pelo roncar do cão, adormeci a contratura que vive agarrada ao meu pescoço há mais de dez anos. Perguntam-me por que  não me livro dela. É uma contratura de estimação. Um repositório discreto de todos os enervamentos e angústias. Testemunha silenciosa de bagagens escondidas no fundo do rio. Dor amiga que avisa dos excessos. Álibi perfeito de relaxantes musculares. Essa pequena maravilha do reino da ciência.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Balada do Mar Salgado

Quando março começou seguiu-se junho e já ia na metade.
Perdi a primavera na minha cidade. Não vou falar dos jaracandás. Toda a gente fala nos jaracandás e até esse tempo já passou. Vou falar no frio das manhãs de primavera. Nunca passo tanto frio como naqueles dias em que decido que estará calor à tarde. Acontece todos os dias entre março e junho. Fez-me falta o frio das manhãs de primavera. É um frio que nos insulta, que nos coloca no nosso insignificante lugar, que nos emagrece. É o segundo ano que perco esse frio. O outro ano em que também o perdi foi um ano memoravelmente mau.
Cá em casa estamos bem, obrigada. Quando alguém tosse perguntamos com um ar descomprometido mas interessado “– covid?”.  Até agora as respostas têm sido sinceramente negativas.
Passámos três maravilhosos meses de quarenta, isolados mas felizes, entre o ócio isento de culpa e a comodidade dos relógios de sol avariados. Lemos. Cozinhámos. Tocámos a duas mãos uma pauta inteira. Banimos o pouco que ainda havia de televisão. Por pudor, fingi lamentar-me o mais que pude.
Agora já não deixamos os sapatos fora de casa. Não desinfetamos as mãos sempre que passamos por alguém e não passeamos o cão vinte vezes por dia. Não podendo manter a quarentena, esquecemo-nos completamente do pretexto e acumulamos máscaras cirúrgicas pelos cantos da casa sem sequer saber a quem pertencem.
Não voltei, ainda, a cruzar o mar.
Mas o mar, que é meu elemento, corre-me nas veias e, ocasionalmente, no rosto. Está em mim mesmo quando o meu único horizonte é a terra e as árvores de que são feitos os braços com que me embala o meu capitão.
Talvez talvez talvez, só, até nem precise de voltar.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Trade off

Às vezes, quando a noite é longa e o fresco da rua não me chega aos pés e crescimento das unhas me impede de dormir, às vezes, quando o resto da casa sonha o aroma dos lilases e eu sou submersa pela sombra dos poemas ao lado da cabeceira, às vezes, nessas alturas, queria que durante sessenta minutos, nem mais um segundo, a felicidade desse a trégua necessária à sobrevivência da vontade de escrever.