A minha avó materna foi uma criatura singular. Tinha um feitio insuportável. Era uma doçura “para os de fora” como dizia o meu avô.
Ao mesmo tempo era uma verdadeira estrela.
Apesar da decadência que a colocou na classe média, fazia as suas refeições com talheres de prata, um jogo composto por colher de sopa, garfo e faca só dela. O meu avô também tinha os dele. Como ela dizia, fazia parte do que sobrou “depois que o teu avô deu cabo da ourivesaria...”. A Ourivesaria Ribeiro, sita na anteriormente distinta Rua do Loureiro, estava na família desde 1762, passando de pai para filho primogénito até que chegou às mãos de um homem sensível a quem não deixaram ir para Belas Artes porque isso eram “ocupações para ociosos” e que deviam permanecer como meros passatempos na vida de um homem decente. Perdi a conta das vezes que a ouvi falar do meu avô como um homem que não sabia dizer não – referindo-se às histórias dos pulhas que se abasteciam na loja e diziam que pagavam depois.
Eram gente de ter criados de dentro e criados de fora; destes nem chegavam a saber o nome. A minha mãe não carregava a pasta no caminho para o colégio. No tempo do Salazar não havia tanta pouca-vergonha. Depois, o meu avô deu cabo da ourivesaria; meteram-se num barco para o Brasil; voltaram; morreram confortavelmente instalados na classe média.
Era cliente dos Armazéns Marques Soares, daquelas lojas de departamento onde a roupa é estupidamente mais cara porque as pessoas abrem contas e pagam em vezes, sem juros. Lá, as camisolas estavam todas em prateleiras e em plásticos individuais. E as funcionárias atendiam as clientes desde que chegavam até que pagassem na caixa central. Exagerava bastante nas compras. O meu avô pagava tudo. Chegou a ter três tailleurs brancos. Ficavam-lhe bem quando a Primavera já ia adiantada, coordenados com blusas de seda azul escura às bolas brancas.
Nunca saía de casa sem ter as unhas arranjadas e batom.
Não gostava de beijos. E dizia-o. Tinha meios-irmãos. O pai era militar e morreu de febre amarela. O seu vestido de casamento foi mandá-lo fazer a Paris.
Possuía muitas coisas. Fiquei com algumas. Presentes de aniversário, Páscoa, mimos do meu avô. Todas da Ourivesaria. Em conjunto com os calotes dos pulhas, o meu avô ajudou a enterrar a ourivesaria, agora eu tenho a certeza. São as minhas jóias mais bonitas.
A minha avó possuía mais uma coisa fantástica, mas que eu não herdei: POBRES.
Sim, a minha avó TINHA pobres. Dizia: “Eu tenho que ir ver os MEUS POBRES.” Ia à Baixa duas a três vezes por semana. Ia ver os pobres dela e ia ao Marques Soares. Pelo meio lanchava com as amigas na Brasileira ou na Império. Nas tardes da semana, a Baixa do Porto ainda não estava atulhada de desempregados ou subsidiados. Ia ter com a D. Mariazinha Modista, a D. Mariazinha Miserável e a D. Lucília. Esclarece-se que lá em casa toda a gente sempre teve cognomes, vício que o meu avô passou aos filhos e netos. Havia a Bomba Atómica (familiar), o Quenéde (vizinho), o Cantor das Multidões (familiar)... A Modista tinha um atelier, a Miserável era rica e estupidamente sovina e a D. Lucília era a D. Lucília.
Mas ela ia ver os seus pobres. Sempre achei isto uma coisa muito chique. Eu também fui com ela muitas vezes. Nunca vi os pobres, mas via sempre as freiras. A minha avó, apesar de lá ir, correspondia-se com elas. Recebia pajelas novas pelo correio.
Só não eram chiques os calendários dos artistas deficientes que ela trazia para casa, a fazer par com o calendário das Missões que, para além das fases da lua, informava o Santo de cada dia. Não eram chiques mas vinham dos pobres dela. Coitados. Tentei algumas vezes imitar aqueles artistas, pintando com a boca ou com o pé. Desisti. Nunca percebi como aqueles que pintavam com a boca impediam a baba de cair no trabalho. Atribuí a resistência às cãibras na planta do pé dos outros a uma inspiração divina.
Quando começou a dizer que a criada andava a levar-lhe as chávenas do serviço de chá que lhe ofereceram no seu casamento nas copas do soutien, foi viver para um lar. Um mês depois disto e dois dias antes de morrer, na tarde do seu aniversário a 28/12 lanchou com a minha mãe e conversou como se estivesse a tomar chá com a mãe dela. Veio pouca gente ao funeral. Ficamos com o fim de ano estragado.
Nunca fui amiga dela. Ela era impossível. Uma verdadeira estrela.
Confirma-se! A tua avó era uma Senhora Estrela!
ResponderEliminarTer uma avó estrela dá origem a algumas histórias para contar, mas depois ficou a falta da verdadeira avó, não é?
ResponderEliminarSenhora Estrela, Senhora Estrela.
ResponderEliminarDe repente, pareceu-me estar a entrar no mundo da Allende...
Até me emocionei.
Também passei uma fase em que, inspirada nesses calendários de que falas, andei a tentar pintar com os pés. Na verdade, acho que não tem grande diferença daquilo que consigo fazer com as mãos...
ResponderEliminarEstrelita, quando formos nós a ir lanchar à Baixa eu conto-te umas histórias. Provavelmente vou emocionar-te ainda mais porque não compreenderás a razão de eu ter sempre um sorriso no rosto.
ResponderEliminar