quarta-feira, 31 de março de 2010

Querida Amiga


Imagino a campa muito limpa. É rasa e tem flores. Não tem velas. A fotografia que se vê é a ampliação granulosa da parte de uma que tirámos. Só o teu rosto. Estás a colocar o cabelo atrás da orelha esquerda.

Não. Não é assim romântico, à Herculano.

Morreste naquele instante. Em que eu te matei. Só depois percebi que foi premeditado. Porque tinha que ser assim. Porque tentaste; bastou isso. Foi a tentativa que te matou, entendes?

Cravaste a faca mas não torceste. Ficaste satisfeita apenas com o esforço da perfuração. Deixaste-a lá. Não a puxaste. Não sangrei. Fiquei assim, a olhar para ti, meses e anos enquanto as tuas pupilas perdiam cor.

Até que consegui balbuciar o anúncio de que tinhas morrido – já estavas podre até aos ossos quando te guardei.

Ficaste menos alta assim, morta. Ficaste feia. Nem te concedi a graça de seres um fantasma.

Revoguei todos os perdões que te dei.

Acabei contigo assim. O que sobrou está num ossário ordinário qualquer e não sei o número da tua gaveta.

Descobri que tenho vocação para SOL. Não mais orbitei ninguém.


5 comentários:

  1. Gostei muito. Faz-me lembrar um texto que escrevi sobre a minha própria morte:

    "Um dia, à tarde, li no jornal que tinha morrido. Nem eu próprio acreditei.

    Não chegou a haver fotográfos, entrevistas, nada! Fiquei desiludido. Muito desiludido.

    Fiz as malas calmamente (contudo esqueci-me de uma gravata) e parti com lágrimas nos olhos."-SA, 12 Janeiro 2009.

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  2. @ Solidão, duas observações: 1. obrigada por gostar muito do meu cadastro; 2. para cadáver o seu blog mexe bastante...

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  3. Tão bom continuo a ouvir o raio da portão do cemitério a chiar de cada vez que leio o post...

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  4. @ Cuca: mas de certo sentes o imenso Sol a torrar-te as costas!

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  5. Medusa: lembro-me ainda de outro texto antigo: "Já morreste mas ainda não me consegui livrar do teu cadáver".

    `Relativamente ao rigor mortis do meu blog, vou-te dizer (sim, vou tratar-te por tu), que estou vivo, graças a um blog morto.

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