Por estes dias completam-se quatro anos desde o início da minha itinerância.
Vivi no meio do mato. Vivi no meio do mar. Vivi numa estância balnear abandonada. Vi carrinhas desconhecedoras das siglas ASAE que vendiam peixe fresco e percebes à porta de casa e me serviam de despertador aos sábados de manhã. Vi mercearias do tamanho da minha sala onde se vendia de tudo, desde aquecedores a cromos para cadernetas, candeeiros, papel higiénico e sapos de louça. Vi carros enfeitados com cornos de carneiro, velhas enlutadas de meias de lã grossa em pleno julho, céus plantetarizados, estrelas cadentes a mergulhar no vapor quente que saía da terra. Vi reformados perderem a reforma num mau dia de sueca, bailaricos de matinée com homens com cheiro a restaurador olex, marchas populares ao som de gira-discos de vinil, procissões intermináveis com crianças gordas vestidas de anjo e santos de madeira carunchosa carregados por políticos eminentes. Vi sapos enormes, baratas de vários tamanhos, com e sem asas, águias, milhafres, cegonhas, doninhas, golfinhos, tubarões de terra e de mar, ouriços espinhosos, esquilos atrevidos. Fui adotada por um galinheiro completo, por um gato preto de olhos verdes que, à noite, vigiava a minha casa e por uma família de grilos que se instalou debaixo do meu sofá.
Vi faróis comandados por homens suspeitos, vi faróis comandados por mulheres de coração grande, vi faróis comandados um computador desumano.
Vi tempestades que se desembrulharam debaixo da minha cabeça e me fizeram acreditar que talvez o mundo acabasse mesmo nos próximos minutos. Vi arco-íris duplos que me suspenderam a respiração e me fizeram acreditar que talvez no final do arco houvesse mesmo um pote de ouro guardado por um duende.
Vi homens adultos chorarem, tremerem, arrependerem-se, prometerem vinganças terríveis, ficarem indiferentes. Tudo com sotaques diferentes. Vi mães perderem os seus filhos e filhos serem devolvidos às suas mães. Vi pessoas que foram tratadas como animais e mantiveram a dignidade humana. Vi o processamento do perdão dentro do peito das gentes duras.
Vi todas estas coisas da única forma que se podem ver as coisas sem que saibamos se são reais. Vi-as sozinha.
Conduzi em noites de neblina opaca por entre estradas estreitas e atropelei animais selvagens. Fiz a agenda no decalque dos horários dos aviões e passei demasiadas horas na sala de espera dos aeroportos. Encontrei sempre a casa mas a casa era sempre diferente. Morei em casas com vista para a praceta da aldeia, em solares com janelas voltadas para pastos estendidos até ao mar e em condomínios privados voltados para lojas de praia fechadas.
Chorei sempre duas vezes em cada um dos sítios onde vivi. No primeiro e no último dia. E sempre no caminho.
Escolhi o exílio para salvar a alma mas a alma pegou-se ao exílio.
E agora que sei que está na altura de voltar para casa, não sei se consigo voltar para casa.
Momentos, no entanto, que não se perderam no tempo como lágrimas na chuva.
ResponderEliminar"All the moments will be lost in time, like tears, in rain..."
EliminarBlade Runner
Esses dois/três minutos do Rutger Hauer são das coisas mais bem escritas que já se viu em cinema.
EliminarAbsolutamente !
EliminarNão, de facto. São momentos tatuados.
ResponderEliminarVamos ser vizinhas e passear os cães no mesmo jardim? :)
ResponderEliminaroh yeah...
EliminarE eu, mesmo sem ver, pisquei os olhos e por momentos pensei lá estar. Quando as palavras nos levam ao caminho dos outros, esse piscar de olhos chega para nos encher as medidas.
ResponderEliminarAntes estivesses mesmo, Mak... teria sido muito mais divertido.
EliminarPodemos chamar nossa casa a todos os lugares onde o nosso coração foi feliz, sem arrependimentos .
ResponderEliminarVoltar a esta casa é mais uma etapa no percurso.
Faz tempo que não lia um texto tão bom. Obrigada