quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

1826 dias


ACIDENTE I 
(helderiana virulenta)     

eu às vezes apetece-me que vocês sejam felizes hoje, 
roubando aos bocados. Com gotas de sono a morder alto, 
rebentando nas asas. 
Às vezes procuro chamar a atenção, isto é, por vezes decido morrer 
para sempre. Sem anzóis a cair dos braços movendo o ritmo do ar. 
E sem pena, horizontal a tudo. Então costumo ver os amigos encostados 
uns aos outros, lavando árvores. Ou entrando pelo sangue, com as mãos 
todas a dar olhos. 
Lembro-me de vocês quando decido morrer para sempre. 
E quando sou eterno, comendo folhas sentado. 
Sei que há paredes brancas onde as éguas não entram. Ficamos 
às vezes à conversa nos rios infinitos, chorando lentamente 
uma felicidade louca. E somos loucos perguntando, chovendo 
no coração louco. E nada existe que não seja apavorado e 
tremendo. 

Mas tu sabes. Eu quero que tu oiças. As nuvens são inteligentes 
e é por elas que as nossas mãos recebem. Por tudo quanto não existe, 
pondo pedras demoradas junto ao lugar do amor. Tantos mortos, 
dizes, 
órgãos repartidos por tanta nenhuma coisa. Nada. Tanto. 
Eu sou louco e compreendo. Eu tenho o meu orgulho e a minha força. 
Canso-me. Uso as minhas mãos. Deixo o coração ser alternado 
e comestível. E o vento passa lá fora e eu passo cá dentro e lá fora. 
E sigo o rumo das papoilas e digo que amo as coisas raras. 
Neste extremo lugar dos homens, 
                                                            coroado de tudo.

Rui Costa, In As Limitações do Amor são Infinitas- Sombra do Amor - Edições


4 comentários:

  1. Isto é tão maravilhoso, como se tivesse valido a pena, afinal, este dia. "Qualquer forma de poesia", que quebra o silêncio, hoje foi esta. Obrigada, Cuca.

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    1. Ainda bem que ele te quebrou um qualquer silêncio Lady Kina. Fico tão contente quando se confirma a imortalidade dos poetas. Nem podes imaginar.

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  2. 1826 a dividir por 365?

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