sábado, 12 de novembro de 2016

Salman Rushdie e Trump

Fui há tempos a uma dessas livrarias conhecidas tentar comprar o último livro de Salman Rushdie. Não me lembrava do nome do livro e a menina que estava ao balcão nunca tinha ouvido falar de Salman Rushdie (mesmo depois de lhe soletrar o nome). Perguntou-me por um outro título que tivesse escrito e eu respondi-lhe com o óbvio Versículos Satânicos. A menina disse-me, notoriamente incomodada, que ali não vendiam livros "desses". Desproporcionadamente irritada, dirigi-me à mesa, a dez metros de distância, onde estavam expostos uns bons quilos de um livro infantil escrito pelo autor e entreguei-lhe um exemplar explicando-lhe que aquele era o autor de quem ela nunca tinha ouvido falar. Perguntou-me, então, sobre o que é que ele escrevia mas, infelizmente, não consegui encontrar resposta adequada a tão bizarra pergunta vinda de alguém que trabalha numa conceituada livraria. Isto passou-se em Lisboa, na semana anterior à anunciada chegada de Rushdie a Portugal.
Dois Anos, Oito meses e Vinte e Oito Noites, o livro em questão, e que agora tenho no colo, desconfio, foi escrito a pensar na menina que estava ao balcão da livraria. Rushdie podia ter contado esta boa estória da mesma forma genial que contou a história de Os Filhos da Meia Noite ou dos Versículos Satânicos. Mas, em vez disso, decidiu voluntariamente surfar esse tsunami da democratização da cultura e escrever um livro muito explicadinho que qualquer pessoa que saiba juntar letras pode compreender. Segundo li numa entrevista dada ao público, terá ficado muito satisfeito por a crítica ter dito que o livro é engraçado. Vivemos, pois, num mundo  em que os génios da literatura querem escrever coisas engraçadas que possam ser do agrado da classe de pessoas que nunca ouviram falar de Rushdie. E, assim de repente, com este livro no colo, que podia ser genial mas é um livro engraçado, fiquei aqui a pensar para mim que este tipo de democratização - que é o mesmo que permitiu a Trump ganhar as eleições nos Estados Unidos da América - é resultado, contrariamente ao que se diz por aí, não de as elites não ouvirem o povo, mas antes de quererem fingir que o povo está certo e de o seguirem em vez de o dirigirem.

35 comentários:

  1. Os homens precisam de heróis, dizia Carlyle. Mas o que ele não disse, e está subentendido, é que precisa de heróis a quem entenda. Por isso, os "heróis" que querem suprir essas necessidades de heroísmo já perceberam que têm que ser inteligíveis. Não é por acaso que Mao, Pol-Pot, Estaline até Hitler, todos "intelectuais", simplificaram a prosa para que as massas, entendedo-os, os seguisse de olhos fechados. Trump, intelectual não é. Rushdie é. Mas Trump teve anos de treino com um programa de televisão. Rushdie, no início da carreira, trabalhou como guionista para televisão e copywriter de agências de publicidade. Enquanto Trump era a estrela do seu próprio show, a mulher de Rushdie (ex-modelo, como a de Trump) era a estrela de Top Chef.

    Talvez Trump e Rushdie se tenham cruzado nos mesmos estúdios, quem sabe?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Faço já aqui a minha declaração de interesses: gosto demasiado de Rushdie para conseguir estabelecer qualquer comparação entre ambos. O que me entristece é o discurso geral de simplificação com vista a fornecer às massas o pronto-a-comer e as consequências dessa atitude.

      Eliminar
    2. Leio e nunca comento.
      Venho aqui simplesmente dizer que os dois são incomparáveis e se houvesse(m) lido a bio de Rushdie saberia(m) a razão de Lakshmi ser ex desde há muito.
      O mesmo já me aconteceu, mas com Lermontov. Quase ia aos arames com a menina que trabalha na livraria mas que não sabe de nada e que me olhava com cara de retrete. Mesmo soletrando sabia 0. Acho triste e miserável. Nada fora do comum nos dias de hoje.

      Eliminar
    3. Um bom livreiro, nos tempos que correm (de muita edição e péssima tradução), deveria ser mais bem pago que um decorador de interiores.

      Eliminar
  2. Foste ouvi-lo a Óbidos? Eu não fui. Tenho muita pena que o único festival literário em Portugal seja feito durante a semana, numa altura em que é impossível ter férias.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não fui, pelas mesmas razões e também com muita pena. Porém, começo a ficar muito cética quanto aos efeitos de saber mais sobre os escritores de quem gosto do que aquilo que querem dizer nos livros que decidem publicar. Não saber nada sobre os nossos escritores pode ser uma vantagem.

      Eliminar
    2. «Não saber nada sobre os nossos escritores pode ser uma vantagem.»

      mandamento que sigo religiosamente.

      Eliminar
    3. Posso dizer que li coisas na Paris Review que, se já não gostasse antes dos escritores em causa, ter-me-iam feito lê-los de muito má vontade. Tive sorte de os ler antes da era da informação globalizada.

      Eliminar
    4. Creio que se trata de missão impossível quando os ditos escritores se deixam obfuscar pelas luzes da fama -- e tratam de aparecer em todas as festas da alta sociedade, fazendo questão de se fazer acompanhar de forma, diria "trumpiana". Aquilo de que quem não quer ser lobo não lhe veste a pele também se aplica aos homens das letras...

      Eliminar
    5. lá está, por isso deixei de frequentar essas festas da alta sociedade :b agora é só bar aberto no Aleph das Purpurinas!

      Eliminar
    6. Está certo, Flor. Mas eu não prometo não convidar escritores...
      :)

      Eliminar
    7. Creio que o problema, Xilre, é sempre o mesmo. Isso é tudo muito bonito mas os homens de letras também precisam de comer.

      Eliminar
    8. (Além de que não me parece que a maioria das pessoas mantenha tal desinteresse pela vida e pessoa dos escritores)

      Eliminar
    9. Hmmm, quando vejo na capa da Holla, Vargas Llosa com a sua Preysler não creio que exista qualquer questão relacionada com sobrevivência imediata: é vontade de aparecer, mesmo.
      (E se eu dispensava ver Vargas Llosa na capa da Holla).

      Eliminar
    10. Eu não vejo a capa da Holla.
      Podia ter-me poupado guardando para si essa informação!! :)))
      (Já nem vivendo no alto mar...)

      Eliminar
    11. (Ambos sabemos que "aparecer" é o que permite vender. Isso e esconder o génio debaixo do tapete. Prefiro um escritor que "apareça" para vender o génio do que um escritor que se "democratize", escondendo-o.

      Eliminar
  3. já eu, não prefiro nada, heróis, menos ainda.

    o Llosa está no seu direito de namorar e mudar de vida, como qualquer pessoa, o Rushdie ou o carpinteiro da esquina, e parece-me que é mesmo no carpinteiro da esquina que deveriam incidir as nossas atenções, mas ah!, o colectivo!)

    (estou para saber quem diabos vai consertar - que vontade de escrever concertar - o caralho do lavatório que esguicha augas por todollos poros e quais os seus honorários)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Abaixo os heróis de pacotilha!
      Abaixo os lavatórios esguichadores!

      :D

      Eliminar
    2. Porque devíamos preocupar-nos com o carpinteiro da esquina quando podemos preocupar-nos com o declíneo das elites?? Não percebo...

      Eliminar
    3. Cuqca, my dear

      eu fazia-te um desenho, mas tanto te pareceria um cão como uma vaca, donde,

      :)))

      Eliminar
  4. Talvez já não haja cultura geral. Porque o geral tornou-se específico na infinidade de vozes. Tal como Poincaré é tantas vezes considerado o último universalista do seu ramo que se bifurcou exponencialmente com o tempo.
    Porquê conhecer um autor para além dos estritos limites daquilo que publica? A Obra digna desse nome transcende-o no sentido de ser uma emanação da sua (e nossa) própria humanidade, possivelmente nem sequer absolutamente consciente. Deveria ser suficiente.

    Não foi uma vitória de Trump. Foi uma derrota dos (míseros) políticos profissionais que nos calham na roda do azar. E isso sim, é assustador.

    E o eBook cara Cuca? Não há melhor livreiro. Poupa-se no esforço, no preço e no espaço. Acede-se com um suave toque a definições, referências cruzadas. Podemos escrevinhar anotações sem cometer o pecado de macular o papel de um livro. Podemos lê-lo mesmo quando nos "esquecemos" dele.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Deveria ser e é suficiente. Todos os vícios privados de um escritor não fazem, no seu conjunto, uma vírgula fora do sítio na sua obra.
      O bom livreiro, Onónimo, é aquele que não só leu os livros antes de nós como sabe exatamente do que é que gostaremos. Já tive um desses mas mudou de vida.
      Quanto ao ebook, consumo com moderação. Não me importando eu de riscar o que quer que seja, só lhe reconheço os méritos da ubiquidade e da poupança de espaço. Mas eu gosto de ter coisas...

      Eliminar
    2. bem me parecia que, sob esse romantismo que vai aflorando, incauto, se escondia uma possessiva... :P

      Eliminar
    3. ah, e quanto aos ebooks: o que é mesmo um ebook? (a generalidade das pessoas desconhece os gastos energéticos do armazenamento digital em larga escala, eventualmente mais gravosos que o abate - é que existe a reflorestação - a queda da árvore: e, Cuca, continuava a ser tão bom sublinhar, dobrar o canto da página, mas eu já não acumulo livros :)

      Eliminar
    4. Mas é claro! Pois não sabes que o romantismo é assim uma espécie de título aquisitivo da propriedade? É tudo a mesma coisa. A sério que adoro ter coisas. Adoro!!

      Eliminar
    5. Há um estudo australiano, Alexandra, que diz que só as pessoas possessivas é que dobram as páginas e sublinham os livros...
      (Vá lá que ao menos não és romântica ...)
      :))

      Eliminar
    6. nãããoooo!!!
      anotar ainda vá, mas dobrar cantos das folhas?! sacrilégio!!! digno de pirata! há umas coisas para colar.

      O Livreiro digital adapta-se às nossas preferências com uma eficácia notável. Tenho ficado surpreendido com a lista de sugestões.

      Eliminar
    7. Coleciono marcadores de livros. Mas gosto dos meus livros com um ar ... vivido ...
      Nos de capas rígidas que têm uma sobrecapa, a primeira coisa que faço é livrar-me disso.

      Eliminar
  5. apetece-me abraçar-te, logo, abraço-te :)

    ResponderEliminar
  6. que se lixe a minha falta de aptidão para o desenho, sei bem como se abraça :D

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E, tratando-se de um abraço, ninguém quer saber se se trata de vaca ou de cão! :))))))

      Eliminar
  7. now, on what comes to research, i have (again) to be rather honest: uma grande maioria é (mal) plagiada, outra tanta é falsificada, outra, tantíssima (isto diz-se?) não merece sequer uma menção.

    facts are, e tu sabes disso.

    ResponderEliminar
  8. nada disso me surpreende... Darwin previu que um dia deixaríamos de evoluir, os nossos cérebros vão encolher, voltaremos a ser macaquinhos de imitação :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Se essa tese estiver certa, os mais "evoluídos" de entre nós, são os de cérebro encolhido...
      Não me importo de voltar para as árvores. Deve ser uma vida saudável e sempre se evita a escravatura do tempo. Esse neodeus inclemente.

      Eliminar