terça-feira, 22 de novembro de 2016

Mentiras da vida

Os seres humanos não conseguiriam sobreviver sem aquilo a que Ibsen chamou "mentiras da vida". O pensamento limitado a proposições lógicas, cuja expressão mais bem conseguida é não verbal, ou a factualidades demonstráveis – significaria a loucura. A criatividade humana, a capacidade vivificante de negar os ditames do orgânico a fim de dizer "não" até mesmo à própria morte, depende inteiramente do pensamento, da imaginação contrafactual. Inventamos modos alternativos de ser, outros mundos – utópicos ou infernais. Reinventamos o passado e" sonhamos o futuro". Mas, por muito indispensáveis, magnificamente dinâmicas que estas experiências do pensamento sejam, elas não deixam de constituir ficções. 

George Steiner, Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento, Relógio D'Agua

25 comentários:

  1. “A faculdade de mentir, de conceber e de projetar ficções é própria da nossa humanidade. As artes, o comportamento em sociedade e a própria linguagem não seriam possíveis sem ela. Tal como Jonathan Swift no diz de forma tão sagaz através da alegoria, a verdade e a transparência perfeitas pertencem ao reino animal. Os homens e as mulheres perduram em virtude do seu recorrente fingimento. Mas a máscara é usada debaixo da pele.”

    George Steiner, Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento

    O ser humano encontra na imaginação rebelde uma forma de sobrevivência. Os humanos precisam de ficções para explicar a sua existência no universo, para cartografar o mundo, para construir sentidos, para fugir do horror do vazio. A ficção não mente. Apenas finge que é autêntica. Ulisses, Hamlet, Bovary, e tantos outros, são prova disso. Homero, Shakespeare e Flaubert estão mortos, mas as suas personagens respiram vida, passeando-se alegremente pelos jardins da humanidade.

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    1. Talvez até mais do que para explicar a sua existência, precisem da ficção para a suportar.

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    2. “Todo o pensamento começa por um poema.”

      Alain, Commentaire sur “Le Jeune Parque”, 1953.

      Sem dúvida. O ser humano precisa de ficções para suportar a existência. E a existência é sempre interpretação.

      Se o meu salão de chá não estivesse hoje encerrado para descanso do pessoal, convidava-te para tomar um chá. Gosto de falar com piratas :)

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    3. E eu com donas de salões de chá. :))
      (É mesmo assim. Toda a existência é sempre interpretação. A do próprio e a que os outros fazem)

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  2. Vou aceitar, em inédita iniciativa, o teu desafio, precisamente, aquele que me não lançaste: reler "Ficções", afinal são só 158 páginas, acho que ainda aguento.

    (só para que saibas o quão afrontada me sinto)

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    1. Fico contente por aceitares o desafio que não lancei. Também não te lanço o desafio de leres o conto Aleph.

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  3. O ser humano racional nada disso necessita.
    Aceita a sua existência contingente, revê as causas raiz das suas emoções, dos vários papeis que assume de acordo com as circunstâncias, sabe essencialmente aquilo que é.

    Acima de tudo, sabe que toda a sua experiência humana se passa nos fenómenos electro-químicos desencadeados no seu cérebro, que nos formulam o Mapa, continuamente actualizado.
    Na realidade nunca vemos o Território, embora o Mapa, na maioria das situações, mantenha um aproximado isomorfismo lógico com o território, que nos permite viver connosco e com os outros.

    O humano racional é agnóstico até neste aspecto. Todas as vidas têm um valor intrínseco, ainda que o propósito metafísico seja desconhecido ou irremediavelmente perdido, coisa que, em sentido estrito, é absolutamente irrelevante.
    Um Humanista Secular dirá o mesmo. Não é por conseguirmos descrever o electromagnetismo com tanto rigor que a luz do crepúsculo se torna menos Bela.

    Existe, por conseguinte, uma porção de seres humanos que sobrevive perfeitamente na ausência da auto-ficção, da mitomania ou da esperança que haja algo fora da "caixa".

    A primeira coisa que se aprende em qualquer texto introdutório de neurociências e bases neurológicas dos comportamentos é exactamente isso: tudo se passa no modelo continuamente actualizado daquilo que temos por realidade.

    Não é necessário transformar sempre este tema na angústia trágica, paroxística, tão exaltada na literatura lírica e na filosofia pessimista.

    Por muito respeito que tenha pelo intelecto de Steiner, fica a sensação que lhe falta imensa neurociência contemporânea.
    Citar Ibsen nesta época para fundamentar argumentos deste âmbito parece-me ligeiramente retrógrado.

    Boa semana, cara Cuca.

    p.s.: "o pensamento (~não verbal~) limitado a proposições lógicas" não é loucura, é parte instrínseca do método científico, que nos trouxe da savana plistocénica até aqui e agora. e nenhum pensamento se limita a isso.

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    1. É por isto que a filosofia só está deserta para os camelos, pois que nunca há-de acabar-se, pelo contrário, quanto mais ciência, mais ela adensa.

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    2. não tive pilates hoje de manhã, cara Lady Kina.
      a ociosidade dá nestas coisas...


      maneira elaborada de me chamar choné blaterando no deserto? que, obviamente, não levo a mal por: não ser inteiramente mentira; não se tratar de erro de avaliação; nem interessar o que quer que seja à minha cara que a minha pessoa leve a mal.

      Pilates no convés da Cuca? Sábado de manhã? Não há previsão de aguaceiros.

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    3. Por partes, então:

      - não lhe chamei choné coisíssima nenhuma, a menos que o suscitar desta minha pseudo-reflexão aqui exposta faça parte de sê-lo. aquilo que escreveu em cima pareceu-me ir ao encontro da ideia que vai de encontro aqueloutra segundo a qual a filosofia seria hoje em dia um terreno baldio, desértico, por conta da evolução da ciência. porém, quanto mais esta avança, mais a outra engrossa;

      - prefiro que não levem a mal as minhas parvoíces, mesmo quando me encontro séria e sobretudo quando me apresento ofensiva. a si, no entanto, não me lembro de ter-lhe dirigido qualquer palavra que pudesse ser alvo de "mal" interpretação. não lhe chamei choné nem camelo, camelos são os outros, que, não querendo ser chonés, dizem que a filosofia nunca serviu para nada e que já deu o que tinha a dar, a saber, nada;

      - não gostaria que me levasse aquilo que não sendo o bem também não tem mal nenhum, a mal;

      - agora sim: és um bocado choné, como eu, caso contrário não ias perceber nada do que acabo de escrever .

      (agora não me deixe ficar mal...)

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    4. :DDDDD

      perfeitamente entendido. é esta maleita actual de ler coisas na diagonal.

      fomos feitos um para o outro cara Lady Kina.
      tenho dito, mas a minha cara não me liga.

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    5. "O ser humano racional nada disso necessita.
      Aceita a sua existência contingente, revê as causas raiz das suas emoções, dos vários papeis que assume de acordo com as circunstâncias, sabe essencialmente aquilo que é. "
      Não concordo.
      O racional continua a criar histórias e a precisar delas. Até pode saber, num momento ou outro de objetividade, que há detalhes da sua existência que são ficcoes, chamar-lhes-á, por exemplo, interpretações condicionadas, mas não deixará de as inventar. Um homem sem essa capacidade/ necessidade de invenção, é um homem sem esperança.
      Penso que o que Steiner queria dizer é que, sem esse exercício de fantasia enlouquece-se, pura e simplesmente. E eu concordo em absoluto com essa ideia. Não imagino, aliás, fora de um quadro de psicopatia, um ser humano capaz de viver apenas e sempre da mais pura racionalidade.

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    6. Convém não perder de vista que a própria racionalidade não é propriamente um elemento da natureza, sequer do humano. Como construção, assim, talvez possamos dizer que radica inevitavelmente numa ficção...

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    7. " As pessoas falam de viver num mundo real, como se estas divisões, dor e controlo, da densa realidade física deste planeta, fossem o 'mundo real'. É a última coisa que isto é. O "mundo real" , se lhe quisermos chamar assim, é o nível de existência altamente evoluído chamado Unicidade. O mundo que vemos diante dos nossos olhos é um jogo de realidade virtual, tridimensional, criado pela Unicidade, como uma vasta experiência de aprendizagem.(...) Este mundo não é real, é uma Hollywood espiritual. Um cenário.(...) Somos nós que escrevemos o guião e criamos uma realidade física para equivaler à imaginação de nós próprios e do nosso papel, no filme. Pode ser um bonito filme de família repleto de amor e de respeito, ou pode ser um filme de terror. Nós, tu, eu, todos nós, decidimos qual é. Mais ninguém. Não há "Deus", não há "acontecimentos aleatórios"; somos só nós. "

      David Icke, "Eu sou eu, eu sou livre, o guia para os robôs obterem a liberdade"

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    8. Ora, não se enlouquece nada. Exagera-se é no sentido atribuído.

      A mais "pura racionalidade" contínua é um paradoxo, de facto coisa insana, logo irracional. Não foi essa a intenção do argumento.

      A auto-consciência não é absoluta, mas podemos viver sem ficções, ou melhor, compreendendo perfeitamente a sua existência, analisando-as para nós próprios em serena introspecção.
      Aquilo que designa "pura racionalidade", que prefiro substituir simplesmente por "homem racional", ocorre segmentada, como é óbvio. Pela designação de "homem racional" não estou a designar um autómato regido por sequências lógicas.

      Passo a explicar, porque aceito que toda a comunicação falha a veicular com rigor o contexto intencional em que ocorre, facto aplicável a este próprio texto:

      . dizer "não" até mesmo à própria morte: roça a desnecessária irracionalidade, coisa que garanto empiricamente. em contrapartida, o ser racional, que não constrói ficções em torno disto, é usualmente visto como um asceta, outra ficção.
      não, não estamos diariamente, ao levantar, a negar a morte, estamos a concretizar a vida.

      . inventamos modos alternativos de ser, outros mundos – utópicos ou infernais: esta passa quase como um hino ao irracional, tendo em atenção a asserção que a sucede, e não o deve ser. a literatura é um castelo construído sobre estas fundações.
      mas a vida experimentada não necessita deste alicerce para manter a sanidade.

      . reinventamos o passado e "sonhamos o futuro": a primeira parte deixo-a para as neurociências, que há muito lhe responderam; a segunda corrige-se: "estima-se um futuro".
      o "sonho" naquela acepção confere-lhe um carácter romântico mas retira-lhe a mais básica racionalidade. seria muito mais válido no contexto de um romance. mas parece-me que não foi isso que Steiner escreveu.

      . mas, por muito indispensáveis, magnificamente dinâmicas que estas experiências do pensamento sejam, elas não deixam de constituir ficções: é aqui que está o fulcro do meu desentendimento.
      esta proposição é um truísmo que nada acrescenta. todo o nosso "pequeno mundo" íntimo, aquele que existe no nosso cérebro de estrutura dinâmica, é uma ficção porque não pode ser outra coisa, uma imagem imperfeita de uma "realidade" que nem sequer podemos provar que existe de forma unívoca.
      isto ocorre a um nível muito mais fundamental que a mera interpretação de papéis, a imaginação e a criatividade.

      A crítica a Steiner é a falta de novidade, reminiscente da atitude do crente que, em dissonância cognitiva, pensa ter descoberto um novo sentido para uma pequena parte do mundo, sentido esse já descrito há décadas, e de forma estruturada...

      Como observações finais, para tentar evitar o chicote:

      1. cara Lady Kina, não pense que escrevo isto (não, não é negação, excepto talvez tripla negação, que, sendo o caso, me escapa) com a presunção de persuadi-la a "concordar".
      A discordância é um dos motores do mundo humano.

      2. as minhas desculpas cara Cuca, por estar aqui a pintar graffiti por todo o lado.

      3. para um reconhecido amalucado como eu, é quase obscena a quantidade de vezes que escrevi "racional".

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    9. Ora, Lady Kina, os gelados de chocolate não são um elemento da natureza.

      A Cultura existe exactamente como a Oposição à Natureza, como a ferramenta do artesão que molda o barro. De outro modo ainda estaríamos a morrer de frio nas cavernas.

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    10. Não li a citação do Icke com rigor mas por este caminho, bem, o meu obscuro caminho, de caminho estamos em Fermi e na hipótese da simulação.

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    11. A Lady Kina tem razão. Quando se senta serenamente e em introspeção a analisar a sua própria existência, a pessoa racional mais não faz do que reinterpretar. E nessa atividade jamais se distância da subjetividade. Não há racionalidade que evite que a pessoa se pense a si e à sua relação com os outros com base numa interpretação fantasiada dos factos. É impossível não os filtrar pela subjetividade (desde logo porque nunca sabe toda a verdade; tem de construí-la com base em convicções, esperanças, preconceitos e medos.
      A única diferença entre uma pessoa racional e emocional é que a primeira consegue um maior grau de objetividade. Ou seja, cria um filme que pode estar mais próximo da realidade. Ninguém vive dos factos porque os factos são necessariamente apreendidos de uma forma deturpada.
      Não creio que o ser humano conseguisse ser funcional se o privassem de toda a espécie de esperança e se tivesse um mecanismo - que felizmente não tem - de apreender toda a verdade sobre todos os factos.

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    12. (E pensando em Altamira, tenho dificuldades em aceitar que a cultura seja uma oposição à natureza. Parece-me mais uma expressão da fantasia, essa dimensão que é natural ao homem, ao ponto de o fazer inventar os deuses.

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    13. Concordo. O erro está na lógica binária utilizada, por exclusão da difusa, coisa que também elide, por assim dizer, a afirmação de Steiner: completamente racional ou não.
      Há infinitas variações intermédias entre extremos. Toda a avaliação humana é subjectiva.

      A diferença está na consciência do facto, assim como a diferença da física quântica em relação à clássica está na inclusão do observador, logo, do erro de medida.

      A Cultura é, em sentido lato, e, se não estou em erro, etimologicamente semelhante a Civilização do germânico, a antítese da Natureza, do funcionalismo minimalista, da lei dos mínimos, da evolução dolorosamente lenta e do sofrimento dos seres que escapam com o mínimo necessário para sobreviver, os adaptados.

      O Belo é um conceito ausente da Natureza, o Belo é o Inconformado, não o Adaptado.

      Muitas pessoas confundem o "belo natural" com a complexidade emergente na Natureza, estruturas aparentemente complexas com origem nos fenómenos mais simples.

      A abelha não faz a mínima ideia do que é um hexágono, nem constrói a colmeia a pensar em tais coisas. A abelha limita-se a girar, e milhares de abelhas a girar produzem complexidade emergente, um delicado padrão hexagonal, forma mais eficiente de segmentação do espaço.
      Isso é belo para nós por ilusão antrópica, nada mais.

      A esperança não é condição essencial para o ser humano ser funcional. Nós, agnósticos e ateus, mais que os crentes, sabemos isso.
      Esperança de quê em concreto? De sair disto vivos, num outro plano de existência com amigos e familiares há muito falecidos? Se acreditássemos nisso não seríamos ateus. E não acreditando, isso não nos impede de continuar a viver com felicidade.

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  4. (Acho um escândalo que o onónimo venha para este navio tentar seduzir a Lady Kina. Não há respeito pelos meus sentimentos!!!)

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    1. (com efeito, "fomos feitos um para o outro" encerra tamanha carga sedutória que até ruborizei. felizmente não proferiu o ex libris do desejo, "let me put the cream", ou teríamos o caldo entornado.)

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    2. E há lá coisa mais eficaz do que a insinuação da predestinação?? A vítima é logo colada em situação de impotência!!! Do tipo ah são forças superiores e assim...

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    3. Então? O meu afecto não é mutuamente exclusivo. Tenho um coração suficientemente grande para lá caber muita gente em perfeitas condições de salubridade.

      poças, toda a gente bate em quem é pequenino; afinal, a minha educação é de obra de construção civil

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  5. Por ora, viver na ficção parece-me bem. Talvez um dia pense em voltar ao mundo real.

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