quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

a(m)paro

como se insufla infelicidade numa criança de onze anos? obriga-se a dita a ter aulas de educação visual nas quais faz-se tudo menos desenho livre. e dá-se-lhe um trabalho com caneta de aparo e tinta-da-china. em papel cavalinho.
a destreza que a criança não tem fica retratada nos borrões agravados pelas sofridas tentativas de os corrigir com a borracha azul cáustica. aquela de roda de metal no centro. que não apaga mas arranca camadas do papel. já há choro e ajuda ralada dos pais. que se confrontam com a sua inabilidade para o mecanismo - que possui a subtileza cruel de ter um parafuso rombão para regular a abertura da pena, supostamente transformando-o num instrumento de precisão. e a tinta-da-china, que a esta hora já será qualquer coisa como tinta-d’um-raio. ninguém que não o faça por pelo menos oito horas por dia é capaz de usar com desembaraço o aparo de lata sem sujar meio mundo.
o trabalho é avaliado. e conta para a nota.
a tinta é fraca e também o restante material. que nenhum pai de família em pleno juízo gasta mais que o mínimo em tais inutilidades académicas.
pois que se o filho “dá” para as belas-artes, aos onze anos já “deu” e desenha com qualquer coisa. como o meu avô Pimenta a quem ninguém chamava avô Pimenta mas que a mina avó tratava por Pimenta. para nós, era o Jota. o que espatifou com a ourivesaria por não ter nascido para o comércio e sim para o piano e para a pintura. que não deixaram seguir. que desenhava desde criança. a toda a hora. com qualquer coisa.
mandava-me desenhos feitos com canetas bic-laranja nas cores disponíveis: azul, verde, preto e vermelho. pássaros e outros animais, palhaços, bonecas. pássaros em maior quantidade. remetia-mos em envelopes “via aérea”, debruados de losangos nas cores alternadas azul e vermelha. de papel muito fininho. para a minha querida neta com um xi-coração do Jota. tive alguns a decorar-me o quarto. encaixilhados. muitas vezes acompanhavam encomendas. bonecas. de trajes das províncias. e eu que não sabia o que eram xi-corações, muito menos províncias... mas adorava a remessa de bonecas. pés colados em rodelas de pinho. e aí, um autocolante. “Beira Alta”. “Douro Litoral”. lugares que só existiam para as bonecas. redoma em plástico. a mais bonita era uma noiva de Viana e o seu vestido preto em veludo, carregada de filigranas de lata dourada. a única que tinha par era a varina. o garotinho vestia um par de calças em padrão xadrês e trazia gorro num tecido que picava muito.
lembro-me de que as bonecas sempre me pareceram muito agasalhadas.
eram péssimos brinquedos pois, como já disse, traziam os pés colados à patela de madeira. e as roupas não se conseguiam despir.
ficaram todas. visitei-as sempre.






6 comentários:

  1. gosto destas suas histórias de vida [efabulada ou não].

    curioso apenas a varina ter par. mas as mulheres que vivem de olhos no mar são sempre mais dadas.

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  2. e eis o que aconteceu à varina que tinha par.

    de manhã, que medo, que me achasses feia!
    acordei, tremendo, deitada na areia
    mas logo os teus olhos disseram que não,
    e o sol penetrou no meu coração
    mas logo os teus olhos disseram que não,
    e o sol penetrou no meu coração

    vi depois, numa rocha, uma cruz,
    e o teu barco negro dançava na luz
    vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
    dizem as velhas da praia que não voltas:

    são loucas! loucas...

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  3. humilhante mesmo era ter o último grito do material rotring, do tipo que nem o professor de EV sabia existir, e apresentar uns trabalhos ainda mais nojentos do que aqueles que os outros faziam o com o macabro tira-linhas.

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  4. sobre essas bonecas frustrantes - precisamente por não darem para brincar - tenho a dizer que arranquei o pedestal a todas.

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  5. mas sem o pedestalzeco não parávam em pé...

    tive umas que "se" descolaram, também...

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