sábado, 20 de novembro de 2010

Manhã de sol numa esplanada em cima do mar



O café vem sem o adoçante e o pastel de nata vem com a inútil canela. Não tento corrigir o empregado de mesa. Se não aprendeu em seis meses, é pouco provável que venha a aprender algum dia.
A minha melhor qualidade é a capacidade de resignação perante a incapacidade alheia.
As duas mulheres, sentadas do meu lado direito, dividem a atenção entre um bebé e um cão. Um dos dois faz uns ruídos irritantes que perturbam a concentração exigida pela profundidade estonteante das imagens da revista Elle. Ergo o sobrolho para o cão, em quem deposito mais esperanças do que na criança que se vinga de mim soltando um guincho animalesco. As duas mulheres acham graça.
Atrás de mim, sentado sozinho numa mesa, está um homem que faz telefonemas consecutivos a mulheres diferentes. O meu café ainda está a meio e já ele acordou três. Sempre com o mesmo tom de voz. Dispensa a todas o tratamento por menina. E a todas queria apenas ser o primeiro a dar-lhes um beijinho de bom dia. Pergunto-me se será um novo serviço telefónico, daqueles que se subscrevem através de uma assinatura mensal. A voz melosa desvanece-se rapidamente quando decide desancar o empregado que trocou o pão caseiro pelo pão de forma. Ao contrário de mim, este homem não tem nenhuma capacidade de resignação perante a incapacidade alheia.
À minha frente sentou-se o casal típico desta esplanada. Vejo-o todas as manhãs de sábado, encarnado em diferentes corpos. Ele é inglês, velho e mais ou menos rico. Ela é uma portuguesa, normalmente agente imobiliária. Faz uma eficiente utilização do inglês deficiente para tentar convencer o velho que está interessada nos problemas dele. É solícita na tradução ao empregado do pedido de um café sem leite. Quando se quer um café sem leite, pede-se um café. Toda a gente sabe isso. Aposto comigo própria que o inglês acabará por beber um café com leite e, dez minutos depois, devo-me cinco euros. Estes dois ainda não dormiram juntos. Mas se ela não tiver capacidade de resignação perante a incapacidade alheia, uma conhecida marca de comprimidos azuis acabará por lhe patrocinar uma deprimente noite de sexo num aldeamento algarvio.
Para um sábado de manhã, toda esta exibição de existência humana parece-me excessiva e despudorada. Desisto da exigente actividade mental de ver fotografias na revista Elle, decido voltar para casa e peço a conta.
O cão aproxima-se para me avisar que deveria subscrever um desses modernos serviços telefónicos de bons dias menina, acreditar nas potencialidades do sexo com ingleses idosos e levar para casa um bebé guinchador.
O empregado engana-se e traz-me a conta das duas mulheres. Eu pago-a em silêncio.
Afinal, a minha melhor qualidade é a capacidade de resignação perante a incapacidade alheia.

5 comentários:

  1. Eis Cuca: o íman humano de todos os maluquinhos deste mundo e do outro.

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  2. Ingratos! Um texto tão lindo e a única coisa que eu ganho é um insulto de um maluquinho!Vão apanhar com o resto dos videos do ballet russo para verem o que é bom.

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  3. já arranjei outro sítio para colocar a minha nova gargalhada de má:

    muahahahaha!

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  4. olha, vou presumir que isso foi uma gargalhada solidária porque esta caixa já contém toda a hostilidade que a cuca consegue suportar.

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