sábado, 16 de outubro de 2010

Um homem com esperança

A esperança é a trela da submissão”
Raol Vaneigem

Em meados de Março, quando tudo aquilo se tornou maior do que ele, inventou um pretexto socialmente aceitável e dispôs-se a fazer quinhentos quilómetros, apenas para a ver.
Na entrada do centro comercial deteve-se por uns minutos, incrédulo com o facto de ela não ter tido a ânsia, deferência ou, pelo menos, gentileza, de o esperar à porta.
Na verdade, não era nada que não estivesse em total coerência com a gélida conversa telefónica que antecedeu aquele encontro. Ele precisou de vinte minutos e toda a sua capacidade persuasiva para a convencer a emprestar-lhe a sua boa vontade na concretização do propósito da viagem.
Ao telefone, ela mostrou-se tão ausente e desconcertante como era habitual, adiantando como justificação para a impossibilidade de tomar um café com ele o simples facto de não lhe dar muito jeito e não ter sido antecipadamente avisada daquela viagem. Ele esforçou-se por esconder o desapontamento e a humilhação que se seguiram, quando, finalmente, num discurso em que a palavra hipoteticamente foi utilizada cinco vezes, ela o informou que o acontecimento “vê-la” vinha associado a uma interminável lista de condições que teriam que ser expressamente aceites.
Foi assim que deu por si a jurar solenemente que não lhe dirigiria uma palavra sobre os seus sentimentos, que não a tentaria beijar, que nem sequer lhe tocaria e que o único tema sobre o qual falariam seria literatura.
Como se não fosse suficientemente humilhante, para um homem com mais de quarenta anos e com uma mulher e um filho em casa, sujeitar-se a estas cláusulas contratuais, ela fez questão de lhe mostrar que o considerava um louco perigoso, exigindo-lhe que o encontro se desse num local tão público como um restaurante de um centro comercial, num sábado à tarde.
Num optimismo infantil, que ela qualificou como despropositado, ainda lhe pediu que o fosse buscar a um famoso café na baixa de Lisboa. A resposta que o atingiu foi um seco “Lamento, mas não sou o tipo de mulher que vá buscar homens a cafés. Terás de vir de táxi, apanhar o metro ou fazer os três quilómetros a pé.”
Depois de uns minutos de espera, já à porta do centro comercial, foi obrigado a desfazer-se da imagem mental que o aqueceu durante o último mês, e que envolvia uma corrida para um abraço apaixonado, num reencontro íntimo e inesquecível, preferencialmente debaixo de chuva, em plena rua de Lisboa.
Abanou a cabeça e entrou no centro comercial à procura dela.
Quando a viu ao longe, sentada em frente a uma chávena vazia e a brincar com o telemóvel, apesar de o coração ter disparado ao nível da taquicardia, sentiu um misto de alívio por, sem o vestido institucional que tanto o intimidou, ela ter o confortável aspecto de uma qualquer outra mulher. No seu contexto, uma mulher tangível.
Ela só desviou os olhos do telemóvel quando o sentiu a vinte centímetros de distância, a respirar-lhe no pescoço. Sem se dar ao trabalho de se levantar, estendeu-lhe o lado esquerdo do rosto, usou a mão direita para estabelecer, instintivamente, um espaço de segurança física entre ambos, e apontou-lhe a cadeira vazia na sua frente.
Aquela confortável imagem de normalidade que o encheu de esperança e auto-confiança, foi como uma miragem que se desfez com a proximidade. Com o vestido sofisticado ou de camisa branca e jeans, ela continuava a intimidá-lo. A perturbadora intangibilidade não estava na qualidade da seda do vestido. Vinha de dentro.
Tentou fazer uma graça com o facto de estar a tremer como um miúdo de dez anos, mas ela olhou-o fixamente sem se rir. A primeira frase que lhe dirigiu foi uma ameaçadora síntese das condições contratuais da sua presença.
Meia hora depois, a necessidade de lhe despejar os seus sentimentos impôs-se à vontade de evitar que ela se levantasse e fosse embora.
Enquanto ela lhe falava de literatura em tom de crítico de jornal, ele pediu-a em casamento.
Sem se dar ao trabalho de o lembrar que ele já era casado, ela continuou a falar-lhe de literatura, fazendo, em presença, aquilo que nos últimos meses se tinha especializado a fazer por correspondência, ou seja, exibindo uma profunda indiferença e surdez diante da exteriorização dos sentimentos dele.
O encontro durou pouco mais de uma hora. Quando ele insistiu em segurar-lhe as mãos de encontro ao tampo da mesa, olhando-a nos olhos enquanto repetia uma lenga-lenga de clichés românticos, percebeu que aquilo que o olhar dela lhe devolvia era muito mais do que impaciência e frieza. Estava verdadeiramente zangada. Daquela forma horrível que só conseguem as mulheres a quem o amor dos outros as ofende.
Ela recuperou as mãos num gesto violento e colocou-se imediatamente de pé.
- Não sou uma personagem dos teus livros.
Sozinho, com o vazio do espaço dela como cenário, ele encontrou naquela frase a esperança que nos últimos seis meses lhe foi negada.
Desde que se seja absurdamente insistente, há mais do que uma maneira de se ter os direitos de autor sobre a vida de quem se ama.

Voltou para casa e transformou-a na personagem de um dos seus livros.

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