domingo, 31 de outubro de 2010

O homem insuportável

Com o limite da má educação já largamente ultrapassado, fui obrigada a atender-lhe o telefone e a penitenciar-me com um jantar que já se adivinhava de profundo sofrimento.
Aproveitei o estado de espírito de voyeur de sinistrados de auto-estrada, para o deixar escolher o restaurante. Não fiquei surpreendida por ser a única cliente numa sala presunçoso-decadente que deve ter estado na moda há vinte anos atrás. Apelei à minha tolerância e fiz de conta que aquilo não era importante.
Logo que nos sentámos, a sádica gerente, talvez aborrecida por ter dois clientes, fez questão de lhe vir perguntar se foi ele quem telefonou às cinco da tarde a marcar uma mesa e informar-se sobre os detalhes da ementa. Recostei-me na cadeira para assistir a esse triste espectáculo que é um homem a tentar a todo o custo manter o disfarce cool, mesmo que, para tanto, tenha que se digladiar desajeitadamente com uma desconhecida que não se costuma enganar nestas coisas e não está suficientemente sensibilizada para admitir falsos equívocos. Apelei à minha tolerância e fiz de conta que aquilo não era ridículo.
A partir dali, foi mais ou menos como aquelas actuações dos rapazinhos dos Ídolos, quando se lhes rebenta a corda na guitarra.
Com a expressão de quem lê um manual de instruções numa língua desconhecida, resolveu fazer-me uma, não solicitada, síntese de um curriculum meticulosamente construído para culminar no retrato robot daquilo que se convenceu ser o meu homem de sonho.
E apesar da velocidade supersónica com que degluti o queijo e o presunto que me puseram na frente, ainda antes de ter terminado já estava informada de que o meu acompanhante tem qualidades tão relevantes como o facto de ser saudável e nunca ter tido uma doença nem sequer colesterol, não ter dívidas, ter uma casa já paga ao banco com um pequeno jardim que costuma regar nas tardes de Domingo, gostar muito de crianças e cães, ser primo e ou amigo de pelo menos trinta personalidades mediáticas, frequentar o ginásio três vezes por semana, ter dois mestrados em áreas que seria incapaz de reproduzir, ser a favor da divisão de tarefas domésticas entre os casais, ser contra essa coisa da homossexualidade e ser o tipo de homem que, além de acreditar em relações sexuais diárias, tem uma ex-mulher que acha que ele é bom na cama. E claro, sentir que a sua vida é óptima e gostar muito de si próprio.
Esta última parte, repetida três vezes, em estrutura de refrão.
O problema dos amigos dos amigos é que quando se comete a asneira de aceitar jantar com eles, perde-se a liberdade de, entre as entradas e o primeiro prato, beber o resto do vinho de um único trago, sair da mesa em absoluto silêncio, virar as costas e voltar para casa. Apelei à minha tolerância e fiz de conta que aquilo não era insuportável.
Esperei que ele se calasse, engoli o resto do presunto e olhei-o nos olhos com uma expressão roubada aos psiquiatras dos filmes americanos.
- Foi a tua mulher que te deixou, não foi? Trocou-te por outro?
Paguei a minha maldade com três agonizantes quartos de hora feitos de mesquinhos pormenores quotidianos da tragédia de uma separação, acompanhados por olhos vermelhos e voz genuinamente embargada.
Enquanto bebia sozinha a garrafa de vinho - além de ser manifesto que eu necessitava mais dela, também já se tinha percebido que ele gostava mesmo era de Sumol de ananás - tentei acabar com aquela miséria.
- Pois, pois, já percebi. É uma chatice! Nem vale a pena dizeres mais…
Ele desculpou-se, prometeu mudar de assunto e, para aligeirar a conversa, escolheu falar das doenças da mãe e de como o facto de ser filho único e ter que assistir a família o tem distraído do tal do desgosto do divórcio.
Apelei à minha tolerância, mas já não restava nenhuma.
E foi no momento da transição da rinite alérgica da senhora mãe dele para a descrição da operação às varizes que, finalmente, eu perdi o controlo.
Mandei-o calar com um gesto, levei as mãos à cabeça e dei por mim a murmurar para uma sala vazia:
- Tenho que sair já daqui! Não aguento mais isto!
Os meus amigos, amigos dele, concluíram que tenho uma extrema falta de tolerância.
(pintura de René Magritte)

8 comentários:

  1. Como eu gostei deste texto!!! É incrível como existem pessoas que julgam conseguir impressionar quem já não é facilmente impressionável, com o que não impressiona de todo. Não percebem que caladinhos até faziam um discurso.

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  2. Vicky, o que me pergunto é por andou esta gente antes de chegar à minha mesa. Isto deve ter funcionado numa altura qualquer...

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  3. Há muito não te via tão ... (acrescentar o adjectivo adequado). Talvez desde que resolveste deixar de pagar a contribuição ao menino de áfrica que apadrinhaste.

    Tive pena do homem.

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  4. Eu ainda não deixei de pagar a contribuição da menina que amadrinhei em África (é verdade), e também tenho "intolerâncias" destas. Acho que não é por aí.
    Cuca, se tivesse funcionado ele não teria ido parar à sua mesa. Velha mania de não se aprender com os erros. Talvez por que ninguém está para os ensinar...

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  5. Medusa, canaliza a pena para mim que fui barbaramente torturada. E isso da criança de´África foi porque descobri que tinha mais madrinhas do que as damas de honor das raínhas da corte francesa.

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  6. ....adoro-te! só tu para me conseguires fazer rir... sei que me perdoas a sinceridade.... já ganhei folego para passar o dia a sentenciar o destino de desconhecidos....

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  7. Gicas, isto dos castings para marido, está a levar-me o pouco de sanidade que me restava...

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