sábado, 22 de março de 2025

Andorinhas de porcelana desfeitas no chão

À noite, ao segundo dia da tempestade, o vento surpreendeu-nos na cama. 
Por mais cuidado que se empenhe na vedação das portas e janelas, por mais obsessão que se gaste na construção de um bunker, a verdade é que, no amor e na arquitetura, hão de sempre existir frinchas invisíveis a olho nu, por onde por onde o mal se expande de fora para dentro. 
Enquanto lá fora o vento arrancava das floreiras as hortenses e contra as portadas fechadas atirava toda a sorte de pequenos objetos, cá dentro, um sistema autónomo de altas e baixas pressões desencadeou um ciclone em cujo vértice desapareceram todas as coisas. Usei a habitual técnica de sobrevivência que consiste em sair do meu corpo e pairar sobre a realidade física olhando-a com a superioridade do espectador. Nunca falha. O desfile da mesquinhez, da maldade, da arrogância e da intolerância exerce um tal horror que torna inútil saber quem se distinguiu com os melhores fatos. 
Antes do amanhecer já tudo tinha passado. Os gritos histéricos do vento foram substituídos pelo canto das ondas. Cá dentro, a cama estava arrumada num silêncio branco e eu pude reocupar o meu próprio corpo.
Porém, quando me levantei para o pequeno almoço e segui um raio de sol até à varanda da frente, encontrei, desfeita em cacos no chão, vítima da tempestade, a andorinha, símbolo da alegria, da resiliência e do renascer da primavera, que quando chegámos a esta casa pendurámos a duas mãos. 

domingo, 9 de março de 2025

Only lovers will survive

desce o azul dos sonhos pelas paredes do quarto e afinal são olhos que espiam os meus pés nus. O lençol é um areal iluminado pelos raios onde, nas piores noites, descalça, danço uma cantiga de facas e rosas que deixam espinhos nos lábios. Mas depois espalha-se a aurora pelas ruas e há ecos de gente e dissipa-se o sangue. A dor é endémica. Porém, se evitar os espelhos, se pisar cuidadosamente  o fio do dia, se não ouvir as risadas dos loucos, se não me cruzar com um animal doente, ainda consigo acreditar que o amor, mas apenas o amor, nos pode salvar. 

O pecado da certeza

Na homilia de hoje, o Padre Flávio de todos os tunnings, falou-nos sobre a certeza e os seus perigos e armadilhas, garantindo-me, olhos nos olhos, como se apenas os dois estivéssemos na igreja, que a certeza é o pior de todos os pecados. Sucede que as certezas - a relativa, a absoluta e sobretudo a certeza possível - são a pedra prima do meu ofício e, por isso mesmo, fui dominada pelo pânico e pela vergonha quando cogitei que o Padre Flávio pudesse ter descoberto o meu segredo e toda a homilia fosse um processo de desaprovação pública por parte do meu novo povo. Com medo de ser cancelada, ainda ensaiei o suborno con uma esmola despropositadamente alta que só serviu para criar desconfianças no bom Pastor.
Fui a primeira a sair. 
Cá fora, o vento demoníaco espalhou a areia da praia que me entrou nas narinas e nos ouvidos e como uma mão imaginária no meio das costas empurrou-me até casa. 
Fui encontrar o capitão Strut em frente de um tabuleiro de xadrez, a ouvir Django Reinhardt e logo partilhei as minhas preocupações. 
- Não vais nada ser cancelada. Não vês que o teu padre plagiou um sermão do “Conclave”? 

quinta-feira, 6 de março de 2025

Metáfora da tristeza

Uma traineira que regressa da pesca vazia de gaivotas.

domingo, 2 de março de 2025

Missa

Encantada pelo chamamento dos sinos desta minha nova terra, que tocam com inusitada alegria aos domingos de manhã, criei o hábito de ir à missa. Pirata assassina pragmática cética, é bom de ver que não me aconteceu nada tão radical como, sequer, passar a admitir a possibilidade da existência de um Deus. 
O que sucede é que para obter boa comida foi necessário aplacar a desconfiança destas gentes e, por comparação com a tasca dos bebados ou a atividade coletiva de remendar redes, a missa de domingo pareceu-me um ato social muito interessante.
Chego sempre cinco minutos adiantada, quando a primeira fila já foi ocupada pelas viúvas dos pescadores e a segunda apresenta uma composição mista de comerciantes e coscuvilheiras locais, nalguns casos, em acumulação de funções.
A terceira e última fila - que a diocese só se dispôs a salvar uma média de vinte almas - é apenas minha e de um ou outro caravanista espanhol que, ao engano ou impedido de fugir pelo nevoeiro, passou o fim de semana junto às dunas.
O Padre Flávio é um miúdo com pouco mais de trinta anos tão inusitadamente alegre como os sinos do chamamento. Todos os domingos, antes de abalar no seu citroen cheio de cenas tunning, fala a esta gente sobre resiliência, redenção e revisitação dos pecados. E promete que “a angústia de ter perdido não supera a alegria de ter um dia possuído”.
O Padre Flávio pode ter lido Santo Agostinho, mas não sabe que as viúvas dos pescadores já intuem mais sobre resiliência do que todos os santos retratados nas esculturas bolorentas pregadas junto ao altar.
Termina sempre a missa com os avisos do IPMA, invariavelmente aquém da fustigação que a natureza nos dedica e com esse impagável serviço público que consiste em dizer-nos a hora do preia-mar. 
À saída, evito o olhar de contagiosa nostalgia das viúvas dos pescadores, ensaio um aceno digno ao Padre Flávio e sorrio aos peixeiros, ao talhante e à mulher das frutas. Sabem que não sou um deles, mas não é ainda esta semana que vão deixar de me abastecer a despensa. 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Renascer na Praia

Choveu e choveu e choveu. E os campos que afastam a laguna ficaram alagados e as ruas de asfalto são rios onde dois ou três carros esquecidos navegam ao sabor da corrente. O mar rugiu toda a escura noite, como se quisesse vomitar um mal dos homens que se lhe pegou. Dizem que entrou pelas dunas e foi rente às casas roubar paz e pão. Dormi perturbada pela fúria da natureza e por uma vértebra retorcida. Mas este é um promontório seguro. Daqui vê-se a miséria e a fome e a destruição e a doença e o medo, sem que nada se veja de fora, sem que nada nos venha de fora. 
Quando acordei reguei os meus girassóis e pensei no infinito tempo que demorou fazer pela mão esta jarra caleidoscópio que ja sobreviveu a quatro gerações.
Depois comi tostas com queijo chedar e enquanto ouvia Einaudi na coluna B&O e via a chuva que continua a cair pensei que as praias, são mesmo, mesmo, mesmo, um péssimo sítio para morrer. 

Diário

esta manhã trouxe da vila três girassóis
e afoguei-os 
numa jarra de vidro centenária.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

A minha nova terra II



A minha nova terra

Cansado das minhas lamúrias de refugiada; farto de me ver perseguir lagartas no jardim de magnólias; incrédulo da imagem de um búzio constantemente encostado ao meu ouvido e atónito com a explicação óbvia de que é essencial ouvir o mar para reconciliar os batimentos do coração; assustado com a claustrofobia que nas sombras da noite começou a devorar os dedos dos meus pés, Capitão Strut, deus dos ventos, contador de estórias, ex corsário, construtor de pontes e criatura mais paciente que a literatura já inventou, finalmente, acedeu a mudar-me de terra. 
A minha nova terra é um colorido porto de pescadores com três tascas, uma igreja, uma loja onde se compram louças, vestidos e plásticos e, claro, o mercado do peixe.
Da varanda da sala, habitada pelas mais temerárias gaivotas, vejo os barcos que partem leves com an aurora e regressam de redes pesadas, lá para o meio da tarde, mesmo a tempo do vento norte.
Aqui todos obedecem à tirania do vento, que pode, ou não, permitir-nos abrir as portadas de casa sem morrer esmagados de encontro à parede, acender a lareira sem correr o risco de sofrermos uma intoxicação por fumo e até deixar-nos passear na praia sem ficarmos soterrados em poucos minutos.
Nos dias em que o vento não fecha o mundo costuma cair sobre nós um nevoeiro tão intenso que tornaria impossível a um forasteiro encontrar este sítio, mesmo que nisso tivesse algum duvidoso interesse. Até os bons velhos indígenas podem não raro ser vistos, com uma candeia numa mão e a outra estendida, a apalpar as paredes das casas numa tentativa nem sempre bem sucedida de encontrar a cama..
Às vezes o Capitão Strut regressa à civilização por uns dias e fico aqui sozinha com Coyota, a cadela, a imaginá-lo no São Carlos, ou nos restaurantes da moda da capital, a conviver com pessoas que nem sequer sabem amanhar enguias ou fazer um bom sashimi de tainha do mar.
Depois de chegar a esta nova terra, logo que  a maresia oxigenou o meu envenenado sangue, parti todos os televisores e desencaixotei os livros de poesia. 

Não tenho saudades nenhumas de Lisboa. 


 


Os Viajantes não têm de entregar já as suas comissões

SALDO

 À venda o que os judeus não venderam, o que nobreza e crime não gozaram, o que o amor maldito e a probidade infernal das massas ignoraram; o que nem tempo nem ciência têm de reconhecer:
As vozes reconstituídas; o despertar fraterno de todas as energias corais e orquestrais e suas aplicações instantâneas; a ocasião, única, de distender os sentidos!
À venda os corpos sem preço, sem distinção de raça, mundo, sexo, descendência! A riqueza irrompe em cada lote! Saldo de diamantes sem controlo!
À venda a anarquia para as massas; a satisfação irreprimível para os amadores superiores; a paz atroz para os fiéis e para os amantes! 
À venda as casas e as migrações, os sports, as maravilhas e os conforts perfeitos, e o ruído, o movimento e o futuro que fazem! 
À venda as aplicações de cálculos e os saltos de harmonia inauditos. Regras e achados nunca suspeitados, entrega imediata.
Ímpeto infinito e insensato de esplendores invisíveis, de delícias insensíveis, e seus segredos enlouquecedores para casa vicio, e a sua aterradora alegria para a multidão.
À venda os corpos, as vozes, a imensa opulência inquestionable, o que nunca será vencido! Ainda temos de tudo! Os viajantes não têm de entregar já as suas comissões. 


Jean-Arthur Rimbau

Iluminações - Uma Ceveja no Inferno, tradução de Mário Cesariny. Assírio & Alvim

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Piratas mortas não contam estórias

Naquela primavera, sentados no cume de um monte, com a areia do deserto na boca e o sol a afundar-se no horizonte, Tagik, o berbere contador de estórias, através dos três ou quatro dentes que lhe restam, cuspiu um vaticínio horrível: chegaria o amor.

Como na morte de Samarcanda, como nos grandes espelhos atrás das costas, como nos pesadelos intermináveis dos mosquitos dos trópicos, foi casualmente encontrar-me no lugar onde estava melhor escondida.

Chegou o amor e tinha os seus olhos.

Por uma vez, experimentei pousar-lhe o sabre nas mãos ao invés de o arrecadar dentro do seu peito. 

Vendi a pólvora e troquei o mar por um jardim de magnólias. Perdi há muito os livros da contabilidade. Desinteressa-me o valor do inevitável.

Nunca me pediu nada.

Nunca me perguntou nada. 

Aperfeiçoou a manha de sherazaade, mantendo-me presa na primeira estória enquanto me guarda a mão direita. 

Não voltei ao deserto. Não posso mais voltar ao deserto.



domingo, 9 de fevereiro de 2025

Ou onda

e não havia…
altar…
de que estivéssemos ausentes; 

nem bosque…dança
…som… 

Safo, Poesia Grega, Frederico Lourenço, Quetzal

As Rosas da Piéria

 Morta jazeras e de ti não haverá jamais memória

nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas

da Piéria, mas invisível também na mansão de Hades

andarás para trás e para a frente no meio dos mortos sombrios. 


Safo, Poesia Grega, Frederico Lourenço, Quetzal

Ensaio sobre o ar que não respiro

Fui artista de circo.

Fiz equilibrismo no vértice dos diamantes. Mergulhei em plateias de feras lançando-me das faces de topázios. Trepei por lenços de seda aos telhados de uma certa Lisboa. Em noites sem lua pendurada nas árvores do sul. decorei constelações inteiras.

Fui pirata

Naveguei as vagas que ficam para lá da bruma. Rasguei um ou outro peito 

 Aprendi a amar as noites sem lua.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Liberdade

 

A tua mais irremediável prisão é essa corda que te sai do músculo do coração e junta os pés com as mãos e faz de ti uma pequena trouxa humana no fundo de um velho barco à deriva.

Até já, Ludovico.


 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Breve ensaio sobre a irrelevância do amanhã

Um desses dias do deserto, Tagik, o berbere contador de estórias, no círculo da fogueira que definhava ao vento, aproximou os lábios gretados dos meus ouvidos, e disse-me que todos os amanhãs são uma réplica do dia de hoje. Naqueles dias, como se diz na Bíblia, entre tendas de panos egípcios, chás de menta adocicados com vodka e a falsa promessa de eternidade que há no amanhecer do deserto, não percebi a ameaça contida na premonição.
Hoje, sitiada nesta selva urbana, longe do meu navio, despojada das minhas espadas, exilada no mundo real, percebo na sua plenitude o horror da afirmação. 

sábado, 2 de abril de 2022

A Lua de Ariosto

Ariosto já resolvera, afinal, um dos  mistérios da existência que mais me intrigaram. Onde fica o cemitério dos amores perdidos? Na lua, claro. Nas montanhas da lua encontram-se todas as coisas que na terra nos escorreram pelos dedos das mãos e se perderam para sempre nas faldas do tempo. 
Posso até imaginar, enterrado nas areias de um deserto lunar, um contentor com tampa de jade e a inscrição do meu nome. 
E lá dentro: 
A breve memória de um olhar que perdi na alba; centenas de brincos sem par; dois anéis importantes; muitas horas de paciência; uma larga porção de tempo; duas ou três amizades que estavam destinadas a ser para a vida; vinte e cinco contos originais; a boneca Carole, há tantas luas ida que já nem sei se é perda própria; um lenço caído no chão da Bretanha; o conteúdo integral de tantos livros que esqueci; uma Ilha inteira, com as suas pessoas e casas e cheiros e luz. O juízo de alguns dias. 
Dois amores, de grande calibre.
E tu? O que tem a lua de teu? 

segunda-feira, 28 de março de 2022

Onde vão parar as coisas que perdem na terra?

No universo nunca se perde nada. Onde vão parar as coisas que se perdem na terra? À lua. Nos seus vales brancos encontram-se a fama, que não resiste ao tempo, as orações feitas de má fé, as lágrimas e os suspiros dos amantes, o tempo desperdiçado pelos brincalhões. E é la que se conserva, em ampolas seladas, o tino de quem o perdeu, no todo ou em parte. 

Orlando Furioso de Ludovico Ariosto contado por Italo Calvino, Cavalo de Ferro

Silêncios



sábado, 26 de março de 2022

Equinócio

Esta manhã o rio ia cheio no seu leito e já havia magnólias nos canteiros da margem e a brisa fresca cheirava a jasmim. 
Não vi o bando dos corvos marinhos que, suspeito, partiu para outras bandas. Mas vi os patos e as gaivotas e aquilo que me foi dito serem gansos selvagens e é claro que o equinócio, finalmente, levantou-se sobre as todas as criaturas do rio.
Eu também sou uma criatura do rio. Refugiada do mar, estendo as asas nas águas do rio, limpo nelas as minhas escamas e alimento-me da sua vida. 
E também agradeço o equinócio.

quinta-feira, 24 de março de 2022

os anjos não tocam violino

O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.

E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos - amávamo-nos, amávamo-nos - e eu sabia e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.

Que se amem, e se apavorem um do outro - disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.

Temem a loucura um do outro - disse ele - e é isso que se amam.

Depressa, depressa.

Era um crime.

Os anjos não tocam violino.

(...)

In Herberto Helder, Apresentação do Rosto, Porto Editora.

Bohème

E ali estávamos nós de novo na plateia do São Carlos, eu enterrada num vison comprado em segunda mão e roída pela fome, Mimi, já gelada e tuberculosa, a destilar as últimas gotas da sua paixão, Rodolfo a banhar-se na mais comovente onda de negação e outra vez o mesmo pensamento, aquele que sempre me assalta nestes momentos de extrema tragédia: mas porque é que na ópera as pessoas demoram tanto tempo a morrer? 

quarta-feira, 23 de março de 2022

breve síntese dos dias que não contei

Ainda me impressiona a chuva triste que se cola às costas das mãos e que não se consegue sacudir com um gesto impaciente. 

Ainda me assusta o olhar delator dos loucos quando se cruza com o meu e reage com a efusão de quem encontra um amigo num mercado chinês.

Ainda detesto a nostalgia do pôr-do-sol e das flores que murcham nas jarras e do musgo nas lápides sob a última luz da tarde.

Ainda sonho que sigo um coelho e me perco no subterrâneo surrealista das coisas bonitas e fascinantes onde Alice e a Rainha de Copas são as duas faces do espelho.

Ainda trago no peito a mancha escura da memória dos dias em que não fui feliz todos os dias.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Contou-me a lua

Contou-me a lua que as sombras amanheceram riso
E dissiparam-se nas bolas de sabão que se elevaram
Na sétima onda do mar

Os peixes sentaram-se na areia
Sob um céu de nuvens rosa 
Para me ensinar a amar

Contou-me a lua que as noites amanheceram dias 
E eternizaram-se nos acordes da guitarra
que se elevaram
na sétima onda do mar

Os nossos pés nus na areia,  
A minha mão  dentro da tua 
Para me ensinares a amar

Contou-me a lua que com a ponta dos dedos 
Desenhaste na minha alma 
Um amor maior que os medos.




quinta-feira, 25 de março de 2021

Funeral Blues




De manhã comprámos margaridas. 
Pela tarde plantámo-las no canteiro grande do jardim. 
À noite morreu Kierkegaard, o cão Pirata.
Morremos de faces encostadas e pata na mão, como se deve morrer no amor e na guerra. 
Morremos ambos, porque uma parte de mim morreu com ele. Talvez a melhor. Os livros nada ensinam sobre o sofrimento que é perder um cão e os amigos distraídos levantam o sobrolho e dizem “mas calma, é só um cão”.
Mas não é só um cão. 
É Kierkegaard, o cão Pirata. Testemunha de significativa parte da minha vida. Companheiro de aventuras. Inimigo do leão que surge no início dos filmes da MGM; do secador de cabelo; do aspirador; dos limpa-parabrisas; da chuva e de todos os jardineiros deste mundo. 
Cão melómano, fã de Puccini e da Madame Butterfly. Ouvinte dedicado das minhas tardes de piano, junto do qual gostava de se deitar, para depois levantar a cabeça em protesto aquando das falhas mais críticas. 
Feroz guarda da porta para onde corria, com as unhas sempre demasiado compridas, a baterem de encontro ao soalho. 
Parceiro de sofá e aquecedor biológico nos dias mais frios. 
Patrão, escravo e amigo. 
Quase de certeza, a minha única relação verdadeiramente desinteressada. 
A casa aumentou de tamanho. 
O silêncio é uma noite contínua.
O meu colo ficou vazio. 
Sou uma mulher-sem-cão.
Morreu Kierkegaard, o cão Pirata! 
Batam em latas ou mandem tocar todos os sinos de todas as igrejas.
 Morreu o meu melhor amigo!

terça-feira, 2 de março de 2021

Dois anos e seis meses

Há exatamente dois anos e seis meses começou a contar-me uma estória que interrompe todas as noites, na hora de dormir. Não há nada mais importante na vida do que um bom contador de estórias. 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

E absolvições


Condenações


Carnival

O que me impressionou, ao longo dos seis quilómetros que percorri junto ao rio nesta manhã de carnaval, foi a obliteração dos sonhos. Nenhuma fada, nenhuma rainha, nenhuma princesa, nem sequer uma única bruxa. Nenhum pirata, nenhum super herói, nenhum cowboy, nem sequer um palhaço. Vi uma única criança mascarada. Vestiram-na de velha, retratada na miopia de uns óculos de aros pretos, vestido de flores e colar de pérolas e um manto preto apoiado no respetivo cajado. A única família que passeou uma criança mascarada, encerrou-a num traje de velha deprimida. À falta de flores, borboletas, criaturas mitológicas e salvadores do mundo, ocorreu-me que a magia foi salva do outro lado do espelho. Como na canção do Chico Buarque, haverá talvez, escondido, numa qualquer parte do mundo, um país onde se refugiaram os sonhos. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Das manhãs da normalidade possível

O dia nasceu sob o signo do sol. Parecendo que não, é uma variável relevante. 
Hoje comprei uma couve e uns tomates no mini mercado da esquina e regressei a casa com eles, dentro de uns sacos transparentes, para fazer o almoço. 
Pode haver alguma felicidade nisso de se escolher uns tomates maduros, com rama e tudo, e de os pousar na bancada da cozinha e ficar a pensar que são os tomates ideais para aquilo que queríamos fazer para o almoço. 
Aprendi, entretanto, que a felicidade é mais simples e concreta do que poderíamos imaginar. Já não preciso de encontrar a metáfora perfeita num poema. Uns tomates adequados ao prato têm a mesma aptidão para desencadear no meu cérebro o mecanismo da libertação da serotonina. É uma informação útil. Vidas poderiam ter-se salvo se os seus titulares tivessem aprendido a tirar proveito dos pequenos nadas do universo. Aposto que metade dos suicidas nunca desenvolveu o gosto pela culinária, nem percebeu a energia libertadora que existe entre uma faca e os alimentos crus. 
Depois li uma coisa no Henrique Bento Fialho e lembrei-me do Joe Dassin e passei parte do final da manhã a ouvi-lo na cozinha. 
- E se tu não existisses, pá, porque haveria eu de existir? 
Perguntei ao capitão Strut quando regressou a casa e me surpreendeu na cozinha a esfaquear os tomates do mini mercado. 
O capitão Strut tem o salutar hábito de nunca responder às minhas perguntas estúpidas. Pegou-me na mão e, em silêncio, dançou comigo o resto da música. 
Foi uma boa manhã. 


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Fevereiro

Fevereiro avança 
indiferente aos nossos mortos e moribundos.
A natureza ri-se das dores dos homens 
E dá-lhes, por exemplo, esta inoportuna chuva
de fevereiro.
Os dias não esperam que fechem as feridas dos animais.
Ignoram a ética do luto. 
Caiu fevereiro sobre os nossos mortos e moribundos. 
A chuva assusta as vidraças da janela, 
afoga a papoila que se esforça por nascer,
escorre pela campa do meu último morto e 
enlameia as patas do próximo. 
Há sessenta noites que todos os dias
são regados pela tristeza.
Ensopou o tecido e colou-se aos ossos.
Por vezes, dou por mim a sacudi-los,
no gesto atávico do animal incomodado. 
Se houvesse um raio de sol, 
deitar-me-ia nele,
encostada às paredes da rua, 
com o focinho de encontro ao chão.
Mas não há sol, nem paredes, nem chão.
Só esta chuva triste,
e fevereiro,
e o desrespeito da natureza pelo tempo 
que demoram a sarar, as feridas dos animais.



Hologramas

Fiquei a pensar que talvez  exista 
em todas as imagens, de todas as coisas que compõem o universo e dos seus compositores, um holograma de uma borboleta de asas abertas.
Talvez seja imprescindível encostar o nariz à imagem e afasta-la muito lentamente e fixar o olhar no ponto que é tanto exato quanto irrepetível e misterioso. Perdermo-nos na dose certa de estrabismo, revirar os olhos para dentro, acreditar na existência da borboleta de asas abertas.
É o anti-Aleph. Não o ponto vazio que nos mostra todas as coisas que compõem o universo, mas o ponto cheio que nos mostra o espaço vazio que existe em todas as coisas que compõem o universo. 
Bem sei que o consolo da ideia de uma borboleta de asas abertas no interior das coisas é um holograma. Mas também assim deus e a poesia e ninguém parece especialmente perturbado com isso. 



sábado, 6 de fevereiro de 2021

Confins

Noutros tempos, passei longos dias e ainda mais vastas noites confinada dentro da minha cabeça. O confinamento interior parece-me, de todas as perdas de liberdade, a mais violenta. O cérebro projeta-se, como um hamster histérico, às voltas numa rodinha de plástico. E nós ficamos a girar no interior do brinquedo até que a exaustão nos salve do engodo. Se a loucura não chegar primeiro. 
Para quem foi obrigado a estar fechado dentro da sua própria cabeça, o confinamento sanitário tem a leveza e o arejo de um passeio numa praia vazia. E os tempos de não existência, na sua irrealidade, na sua bizarria, sempre nos trazem o silêncio que pode ser motor de uma qualquer forma de crescimento. 
(pese embora no meu caso, até agora, só o tenha notado nas indesejáveis raízes do cabelo)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

É necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara

Diz Gonçalo M. Tavares, “é necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara”. Antes de nos apagar a cara, a morte escurece-nos o coração. E esse não dispiciendo detalhe, parecendo que não, reforça a urgência da receita. É necessário dançar. É imperioso deixar que a música submeta todos os nossos músculos. Até o do coração. Só a música nos pode salvar. 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A morte do pai

O pai morreu
  e ele, que era duro, endureceu mais.
Informou da existência do cadáver 
  como quem relembra um pormenor.
Amava o pai, mas o coração é assim
(a lei da sobrevivência)
   esconde-se quando o querem matar. 

Gonçalo M Tavares, 1, Relógio D’água.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Mar

“Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people's hats off - then, I account it high time to get to sea as soon as I can.” 
― Herman Melville, Moby-Dick

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Starry Night

Deixei de viver dentro de um livro de poemas, 
algures entre a segunda e a terceira dança. 
Era difícil, 
no espaço entre dois versos, 
unir as mãos e dançar contigo 
todos os acordes do infinito.
Mas quando se aprende a viver
dentro de um livro de poemas,
Amor,
não se retorna à claustrofobia dos espaços.
Sou a habitante discreta de todas as caixas de magia.
Espreito do interior dos espelhos desta casa
E adormeço dentro dos quadros. 
Às vezes navego no veleiro pendurado sobre o piano 
E outras, muitas, quase todas, 
Amanheço no crepúsculo do Van Gogh
que resgatámos de uma noite de Nova Iorque. 
Ancorada nos teus pés, 
deixei de deambular, sonâmbula, 
sob a lua das praias geladas 
e de me pendurar, pelas sombras,
nos mais escuros telhados de lisboa. 
E são teus os dias, as  noites,
Todos os crepúsculos e todas as albas.
Mas quando não souberes de mim,
Amor, 
procura-me nas coisas inanimadas,
para as quais ainda me arrasta
esta estranha sede de magia.




sábado, 16 de janeiro de 2021

Talvez o fim do mundo

Estão nuas as árvores da minha rua. 
Em tempos houve um gaio na floreira da janela. 
Desapareceu quando o tentei subornar com aveia. 
É manhã de sábado e o mundo parece suspenso na imobilidade. São as minhas manhãs preferidas.
Sentada no chão do escritório, velo a estante sem livros novos e lastimo a minha negligência.
Não tenho mais livros para ler e parece que já os não vendem.
O fim do mundo, penso, deve ser qualquer coisa assim. 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

(Temporary Backup) Minuet in D Minor

Estão vinte e seis graus dentro da sala. 
Deitada na chaise long do sofá, com o cão a ressonar encostado à minha perna esquerda, observo a expressão do meu amor enquanto aprende na guitarra o Minuet in D minor. 
Será a música do novo confinamento. 

Tenho saudades dos meus amigos, de passear no Chiado, dos teatros, de ouvir e ver tocar música ao vivo, de jantar em restaurantes, de comer batatas fritas, de aterrar numa cidade desconhecida. Também tenho saudades de abraçar as pessoas de quem gosto, mas sobre isso escolho não pensar. 
Sei que a minha gaiola é dourada e tem vista para o Tejo. 
Esse que corre indiferente à angústia das margens e ensina a lição que eu preciso aprender. 
Correr indiferente à angústia das margens e agradecer o Minuet in D minor; estes vinte e seis graus e os dedos do meu amor na guitarra.



segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Medicamentos do coração

Sofri suficientes desgostos de amor para conhecer de cor cada um dos degraus de pedra de que são feitas as minhas escadas de Kubler-Ross. São altas e retorcidas. Enquanto rastejava por elas, acima ou abaixo, consoante a época do ano, a incidência da luz e os períodos de recessão ou progressão, tive oportunidade de aprender o equivalente a todo um curso superior de geologia. 
Sei muitas coisas sobre corações partidos e ainda mais coisas sobre a alquimia das substâncias que compõem a cola capaz de os endireitar. Experimentei a hiperatividade; a inércia; o áudiolivro do Melville e a sua baleia branca; todos os Jane Austen; a tradução de poemas ingleses; o estudo dos árabes; as festas e a eremitagem. Nunca acreditei no poder curativo do amor, talvez por, antes, ter sido esse mesmo a fonte da doença e eu saber há muitos anos que o que é parte do problema jamais pode ser parte da solução.
Finalmente, tive o meu primeiro desgosto que não foi de amor. Aprendi que quando não é de amor, é só de dor. Tudo o mais é basicamente igual, pois a infelicidade é monocromaticamente aborrecida e as lágrimas sabem sempre ao mesmo. 
Quando o desgosto não é de amor, sei-o agora, o amor é cura e antídoto. 
Passei os últimos dias embrulhada no silêncio da natureza e nos braços do meu amor, com o tempo suspenso na lenta espera da cicatrização dos tecidos. 
O amor, fiquem sabendo, é um corticóide de ação rápida. 

How much do you love me