À noite, ao segundo dia da tempestade, o vento surpreendeu-nos na cama.
Por mais cuidado que se empenhe na vedação das portas e janelas, por mais obsessão que se gaste na construção de um bunker, a verdade é que, no amor e na arquitetura, hão de sempre existir frinchas invisíveis a olho nu, por onde por onde o mal se expande de fora para dentro.
Enquanto lá fora o vento arrancava das floreiras as hortenses e contra as portadas fechadas atirava toda a sorte de pequenos objetos, cá dentro, um sistema autónomo de altas e baixas pressões desencadeou um ciclone em cujo vértice desapareceram todas as coisas. Usei a habitual técnica de sobrevivência que consiste em sair do meu corpo e pairar sobre a realidade física olhando-a com a superioridade do espectador. Nunca falha. O desfile da mesquinhez, da maldade, da arrogância e da intolerância exerce um tal horror que torna inútil saber quem se distinguiu com os melhores fatos.
Antes do amanhecer já tudo tinha passado. Os gritos histéricos do vento foram substituídos pelo canto das ondas. Cá dentro, a cama estava arrumada num silêncio branco e eu pude reocupar o meu próprio corpo.
Porém, quando me levantei para o pequeno almoço e segui um raio de sol até à varanda da frente, encontrei, desfeita em cacos no chão, vítima da tempestade, a andorinha, símbolo da alegria, da resiliência e do renascer da primavera, que quando chegámos a esta casa pendurámos a duas mãos.
Bem coladinha terá agora outro valor, da coisa quebrada mas recuperada.
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