sábado, 3 de dezembro de 2016

Alvíssaras

Perdi o olhar num dos espelhos das casas por onde passei. Sabemos que assim é quando, numa inútil tarde de chuva, distraídos e ao telefone, procuramos num dos cantos da boca a causa de uma irritação qualquer e, nesse estado de irreflexão, o espelho devolve-nos um olhar falsificado.
Perdi-o e só agora constatei a ausência. 
Talvez o tenha perdido no espelho do hall de entrada da que foi a minha primeira casa minha, na mais bonita rua de Lisboa, e onde o espaço era demasiado exíguo para arrumar tanta solidão.
Mas também posso tê-lo deixado, na urgência da saída, no espelho da sala de um antigo solar, entre as porcelanas e os castiçais de prata, vigiados por um morto que nos censurava do alto da parede onde o penduraram. Era uma casa rodeada de nevoeiro, perdida no meio do oceano, com vista para um prado interminável onde as vacas iam dormir.
É ainda possível, embora improvável, tê-lo esquecido no meio da planície alentejana, na casa que ficava em frente à praça onde os velhos gastavam a reforma na batota e que tinha um terraço onde, deitada, vi chegar e, depois, partir, a lenta primavera. 
Ou posso tê-lo perdido naquela casa, quase dentro do mar, onde o vento, à noite, me trazia a fúria das ondas de encontro às rochas, e eu aprendi a escutar-me na sinfonia do caos.
E pode ter-me sido roubado na saída de uma outra casa onde, junto ao meu próprio retrato pintado a acrílico, despojei a minha alma. É uma casa que fechei nas catacumbas do esquecimento e que jaz na imobilidade do gigantesco lençol branco com que escolhi cobrir a realidade. 
Sei, porém, que ainda o tinha à saída dessa outra última primeira casa, de paredes com palmeiras lilases ou rosas verdes pintadas, onde os verve tocavam de manhã à noite, aprendi a poesia, demos nomes aos objetos e foi sempre verão. Lembro-me de o ter visto no espelho do sr. Otis, o elevador, quando carreguei comigo o último dos caixotes.

Irremediavelmente, perdi-o na vasta geografia de um exílio tão longo que se fez pátria. 

13 comentários:

  1. Devias publicar cara Cuca. O carácter afectivo, íntimo ou de um planalto de espelhos, é magnífico, lindo, onírico, de uma sinestesia melancólica mas pungente para quem lê, demasiado belo para se limitar à constrição de um blog. Há livros inteiros sem um segmento de prosa assim.

    Bom fim de semana cara Pirata.

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    1. Ora Onónimo, porquê vender o que podemos dar sem prejuízo próprio?
      :)

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  2. O problema são os espelhos... (razão tinha Borges quando dizia que são abomináveis...)

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    1. Perdem-se coisas nos espelhos. Suponho que também seja possível encontrar coisas nos espelhos. Isso torna-os menos abomináveis.

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  3. Lembra-se daquele do esqui? Este está quase tão bom.

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    1. Perdi a minha referência de humor autodepreciativo desde que o Mexia se deixou de blogues.

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  4. Obrigada. Como sou insuspeita de ser modesta, posso dizer que não dava muito por este post.

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  5. houve uma altura em que perdi parte de mim num espelho.
    passei a comprar tudo por catálogo...

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  6. nã davas muito por este post mas devias dar, nã que eu entenda muito da poda, mas gostei pra lá de tanto :)
    se o encontrar, o que me dás em troca?

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  7. E se esse olhar ficou exausto de tanto perder-se por aí e ao sentir necessidade de um pouco de recolhimento virou-se para dentro de ti? E se o olhar perdido vem encontrar-se, aqui, precisamente aqui, transformado em palavras escritas?
    (claro que sim, Cuca, ao contrário das outras pessoas que comentaram eu estou com os olhos postos nas alvíssaras e é apenas algum pudor que está a impedir-me de gritar, encontrei-o! Encontrei-o!)

    Este post está mesmo qualquer coisa. Ai, olha-me para esta frase: "Irremediavelmente, perdi-o na vasta geografia de um exílio tão longo que se fez pátria."

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    1. Hum, não sei se se conseguem encontrar olhares perdidos em palavras encontradas. Vou estudar esse assunto...

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