sábado, 14 de setembro de 2013

são as águas de março




Hoje de manhã as águas de março chegaram ao meu sul. A chuva entrou-me nos ouvidos antes de todas as outras coisas e sentou-se à espera. A mulher que apanha o lixo na rua queixa-se que a capa da chuva lhe faz calor e garante que tem estado assim desde madrugada. Sem descanso. Finjo um ar incomodado de pura solidariedade. A chuva obriga-nos a sair da rotina. Torna-nos impossível a nossa mesa na esplanada, faz-nos descobrir beirais que não sabíamos que ali estavam e o cão olha para mim confuso, como se também ele percebesse agora o que é perder o rasto da casa.
Hoje de manhã as águas de março chegaram ao meu sul. Talvez escreva um conto começado pela frase Akira procurou um banco num dos jardins de Tóquio e sentou-se para morrer. 
Há vozes soltas que se libertam da minha cabeça. Coisas simples. Um colega que se congratula com as novas funções que lhe permitem ter tempo para pensar. Pensar nas coisas, diz ele com um ar pensativo. A Lykke Li a cantar dance, dance, dance. O livreiro que lamenta ainda não me ter conseguido o livro sobre escritores suicidas mas promete esforçar-se. As palavras de um escritor suicida que um dia me prometeu não morrer antes de mim. A criança que me pergunta se é meu amigo o vagabundo deitado na rua. A dona do café a dizer-me que está complicado hoje. O treinador do cão que me garante que os humanos estão todos doidos. Uma mulher que me mostra uma casa e me pergunta desconfiada se tenho a certeza que preciso de três quartos. 
E depois as vozes voam pela rua e desfazem-se de encontro às poças lamacentas que os meus pés evitam. E eu contente por conseguir fazer isto tão bem. Evitar as poças de lama. Talvez devesse antes descalçar-me e juntar os pés às vozes e, como a Lykke Li, dance, dance, dance. Voltar o rosto para as águas de março e deixá-lo molhar-se. 
Afinal, tenho motivos para festejar a chegada da chuva. Passou-se um ano inteiro e, desta vez, consegui não destruir a vida a ninguém.
Akira procurou um banco num dos jardins de Tóquio e sentou-se para morrer.
De uma forma ou de outra, o suicídio é o natural destino dos escritores.

4 comentários:

  1. Os (escritores) suicidas em geral são os incompreendidos do mundo, principalmente de si próprios. Quando o desespero leva a melhor à sensatez. Não tentam, fazem. Não prometem, cumprem. Falta-lhes a força, falta-lhes a vontade. É tão mais fácil escolher o esquecimento
    Os suicidas não são capitães dum excelso navio pirata que navega todas as águas, mesmo as de março ao sul, barrentas, lamacentas, tortuosas; sempre à tona de água.

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    1. Têm aí um excelente início de tese. Talvez se suicidem para garantir que também na morte serão incompreendidos.

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  2. É impossível não gostar do que escreves. Estou tentada a dizer-te que és das minhas escritoras preferidas, mas isso pode dar-te ideias e não vale a pena juntar uma irritação a outra. (:

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