domingo, 15 de setembro de 2013

Diário de Bordo #2





Latitude 36º 53' 35 N
Longitude 27º 17' 20 E

Deixámos a Sardenha para trás há várias semanas. Só foi possível largar aquela estância turística decadente porque, desta vez, não caí na asneira de levar a partida a referendo. A minha experiência de capitã pirata tem-me ensinado que, em geral, a democracia é uma coisa má e a ditadura infinitamente mais prática. Concedo-lhe alguma eficácia nos estados europeus, onde um grupo de pessoas a que se convencionou chamar o legislador, se encarrega de neutralizar os efeitos da democracia reduzindo-a a uma mera sensação psicológica, ao nível dos fenómenos da alucinação coletiva. Mas nós, dentro deste navio, não temos leis, paciência para as fazer, ou moral para as aplicar. Para evitar confusões, decidi reduzir a fórmula de organização política a duas variáveis da mesma equação: eu mando, os outros obedecem.
Antevendo contestações, com a ajuda do Viking psicopata Adhriminir, o cozinheiro pirata e de Álvaro de Campos, o engenheiro naval, organizei uma festa na véspera da partida. Anunciámos uma happy hour de Margaritas entre a uma e as duas manhã e a minha tripulação, apesar de aqui no navio nunca ter pago por coisa alguma, ainda está de tal forma condicionada pelos efeitos da sociedade mercantilista de que fugimos, que, perante a publicidade de uma borla, não pensa duas vezes antes de se embebedar até cair para o lado.
Acordámos já ao largo do mediterrâneo com os gritos histéricos de Gualtiero, o Italiano, que, vendo-se sequestrado, percebeu que iria faltar ao encontro com uma tal de Anna Belle que tinha conhecido num bar resmenga cheio de turistas franceses. Lembrei-lhe que todos nós temos uma sina e a dele é o azar ao amor e recorri a um ou dois ensinamentos do tempo em que fui budista para o convencer que é melhor entregar-se ao fado do que resistir-lhe e vê-lo exponenciado em fardo nas próximas mil reencarnações. Convenceu-se quando invoquei o argumento experiência própria.
No segundo dia de navegação, depois de debelada a ressaca, a tripulação estava tão furiosa com aquilo do sequestro, que decidi canalizar a energia destrutiva para o treino na atividade que, afinal, é o centro da nossa missão. Pilhar, roubar, aterrorizar pessoas e dominar os mares e o mundo. 
Cruzámo-nos, entre o final das águas italianas e o início das gregas, com um barquinho de pescadores chamado Helenis e eu logo aproveitei a oportunidade para introduzir neste grupo o prazer pela vitória. 
Em cinco minutos burilámos um esquema maligno e muito original que passou por irmos todos para o convés, pedir socorro, fingindo um início de naufrágio. Os pescadores aproximaram-se, uma equipa constituída pelos presidiários e liderada por Gualtiero, o Italiano, saltou para a barcaça e, aproveitando o pasmo com as nossas vestes carnavalescas, apoderámo-nos de pescadores e pescado. 
Comemorámos com um magnífico jantar de sargo grelhado, regado com Soalheiro Alvarinho Primeiras Vinhas 2011, servido pelos pescadores que fizemos nossos escravos. Os ânimos acalmaram-se e a paz voltou a instalar-se neste navio. Os bloggers tiraram fotografias ao peixe para colocarem na internet, os poetas declamaram umas coisas sobre escamas translúcidas sob o luar do sal, os românticos concentraram a sua sina de desgosto em novos objetos, os ex presidiários ficaram quietos a contemplar o calendário com mulheres nuas que roubaram aos pescadores…
Quanto a estes últimos, contava restituí-los à liberdade no dia seguinte, amarrados aos restos da barcaça, depois de me prometerem que iriam à televisão pública contar que tinham sido barbaramente torturados e mentir sobe um arsenal de armas químicas a bordo.
Mas quando os pobres diabos me imploraram que os deixasse ficar, argumentando com a exibição das fotografias das suas mulheres por comparação com a beleza sofisticada das nossas bloggers, a comiseração apoderou-se de mim e faltou-me a coragem para os devolver àquela vida de miséria estética.
Ficámos com mais três inúteis tripulantes e largámos no mar os restos do Helenis, onde cosemos uma réplica da nossa bandeira, na esperança que sobre nós venha a recair a acusação de homicídio dos pescadores.

9 comentários:

  1. E é assim que Gualtiero é apresentado à Samsara. Este Gualtiero não é nada ao Galtieri, esse outro pirata, que governou a Argentina, pois não?
    Galtieri took the Union Jack? Heard about it?
    Coisas de um navio bem é capitaneado por uma Cuca Pirata que em vez de leme tem uma roda de Dharma.

    (Bom. Muito bom!)

    Boa tarde, Cuca :)

    ResponderEliminar
  2. Este Gualtiero foi roubado a uma ópera de Vincenzo Bellini...
    Mas atendendo às voltas da roda do Dharma, é bem possível que seja sempre o mesmo :)

    http://starsmythicalcreatures.blogspot.pt/2013/07/gualtiero-o-italiano.html

    ResponderEliminar
  3. Fantástica esta nossa (perdão, sua, Capitã) filosofia de Democrata Ditador e sentimental para comandar com mão,de ferro uma embarcação terrorista. Lamento que a minha foto do sargo assado tenha sido confundida com a dum iminente político, pouco instragramado em paragens mais atlânticas e a sua publicação nas redes socais vetada e acompanhada dum desmentido público do personagem em questão, deixando bem claro que a sua suposta associação a actos de pura pirataria não passava duma campanha desestabilizadora montada pelos seus opositores. Como palavras leva-as o vento, com o siroco a inflar-nos as velas, continuamos Mediterrâneo fora á procura de bom porto, cheios de boa disposição e Margaritas.

    ResponderEliminar
  4. Capitã, capitã!
    Querida Mãezinha está de asa ao peito e precisa de atenção e cuidados; peço permissão para a içar a bordo (eu tomo conta e prometo que não incomoda ninguém).
    Traz consigo um periquito encorpado que poderá bem fazer as vezes do papagaio que não temos (onde já se viu piratas sem papagaios?)

    ResponderEliminar
  5. Só por essa da beleza das bloggers, ganhaste direito a uma caixa de pastéis de Tentúgal e uma garrafa de licor de ameixa caseiro.
    Se prometeres continuar assim tão elogiosa, a próxima remessa incluirá uma garrafa de champanhe branco e tinto - ou qualquer coisa assim parecida - também de produção caseira. (;

    ResponderEliminar
  6. Ah, esqueci-me. Proponho que rumemos a Reggio, na Calabria, onde há gelados de comer e chorar por mais. Também há umas estátuas famosas que não interessam, posto qu'os homens são de bronze e estão muito mal servidos...

    ResponderEliminar