quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Álvaro de Campos, esse Pirata




Ao largo da Sardenha, fazendo-se transportar num barco insuflável de criança, pediu admissão a bordo um tal de Álvaro de Campos, que se disse Engenheiro Naval e candidato a Pirata.
Tivemos a seguinte conversa:

- Não sei, não. O senhor disse que escreve poesia e eu já tenho escritores entre a minha tripulação. Se ao menos fosse anão…sempre podia aceitá-lo ao abrigo de uma quota especial. Apesar de também já ter um gigante…
Mas diga-me lá… o que o faz querer aderir à dura vida de Pirata?

- Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
(…)

- hum… estou a ver. Mas olhe que este navio não é lugar para nostalgias nem para delírios metafísicos. Além disso, estamos todos aqui para fugir e não para ser encontrados. Especialmente por nós próprios. Tem experiência profissional no ramo da Pirataria?

- (…)Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

- Pois, quem sabe? olhe, eu é que não sei… talvez tenha alguém que possa dar referências suas… mas, afinal, o que o seduz nesta vida da Pirataria?

- (...) Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O indico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

- hum… mas isso são argumentos mais válidos para fazer um cruzeiro do que para tornar-se Pirata. Além do mais, essa conversa de querer morrer não me cai nada bem. Somos um projeto homicida e não suicida. Não estou a ver em que medida possa tornar-se um acréscimo válido.

  - Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
(...)

- Compreendo. Mas engenheiros, civilizados e educados no estrangeiro, também já temos. E olhe que, até agora, deixe que lhe diga que a única diferença que fizeram relativamente aos ex-presidiários foi embebedar-se com maior elegância.Vai dar-me referências, ou não?

- (...) Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas,
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas.

- Pois, mas Jim Barns… não conheço. E hoje estamos sem net, não dá para ir ver à wikkipedia. Mas já que diz que sabe entoar o nosso grito, gostaria de ouvir isso.

- Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...)

- Muito bem. Começo a ficar impressionada. As suas motivações é que não me deixam nada convencida. Quer explicar-se melhor?

- Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!

- Amores passados que volvem com força para nos puxar soa-me a golpe baixo de quem andou a ler o meu blogue para me tentar manipular. Tem noção que nem sequer viajamos com destino traçado?

- Ah seja como for, seja por onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

- E o que diria à minha tripulação, que já não conta com novos recrutamentos e que teria que dividir o espaço consigo?

- Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
(…)

A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados.
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!
Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!

Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
(…)

- hum… só se o contratar para realizar trabalhos pesados. Aqui neste navio ninguém parece disposto a trabalhar...

- (...) Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, fira-os!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das coisas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqüilos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar pra Morte com dor, voluptuosamente,
Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!

Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas.
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra aos velhos navios!
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!(...)

- Bem, se está assim tão disponível para ser torturado… considere-se contratado (se tudo falhar, entrego-o ao viking louco).

- (...) Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:

                                           Fifteen men on the Dead Man's Chest.
                                           Yo-ho ho and a bottle of rum I

E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby,

Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! (...)

- Vejo que isto era mesmo importante para si. Agora acalme-se, vá.

- (…)Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

De repente estala-me sobre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:

Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy..
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy... (...)

- Tenha calma, já lhe disse. E não exagere que até nos faz parecer um bando de psicopatas.

- O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me convosco, piratas!

- oh meu deus… começo a desconfiar que este tipo me vai trazer problemas…

Os excertos são da Ode Marítima, de Álvaro de Campos e as antecipadas desculpas aos puristas de Fernando Pessoa são minhas. Foi-me irresistível.

7 comentários:

  1. Homens que dormem em beliches rudes!

    Homens? E nós as mulheres? Querem ver que ele é misógino? Ou será machista? Humpf

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  2. Não comeces a implicar com o Engenheiro. Como se pode ver pela referência "beliches rudes" às nossas luxuosas instalações, ele não sabe ao que vem. De qualquer forma, foi contratado à experiência.

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  3. Cheira-me a esturro!
    Se lhe dá um amok desses em alto mar fica a tripulação em alvoroço já não há sossego; melhor avisá-lo para estar sogadito e caladito, quando não vai borda fora...
    (brilhante, BRILHANTE)

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  4. Já da primeira vez que li a Ode Marítima, fiquei com sensação que este Heterónimo era masoquista e agora, apesar de continuar a achar o poema duma beleza intensa, vigorosa, trágica e cansativa, não mudei de ideias, bem pelo contrário.
    Bom para a pirataria, esta ânsia de matar de morrer...
    " No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!" (Mensagem subliminar de Álvaro de Campos ao Pipoco...)

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    1. ahaha bem vista, essa da mensagem. Estou a ver que ainda tenho que escrever outro diálogo.

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