quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Café da manhã


A cigana oferece-me a possibilidade de comprar uma mala igualzinha àquela que carrego por apenas quarenta euros. Diz que é uma imitação de qualidade superior à minha, original, mal acabada.
A dona Graça está triste. Partiu-lhe há uma semana para a Alemanha a filha mais nova. O mais velho já se tinha ido para Angola no ano passado e este verão nem sequer voltou para ver a família. Tem uma nova namorada. Angolana. A dona Graça não está entusiasmada com a possibilidade abstrata de ter netos de tez escura. Conta à amiga que agora vê a filha através do ecrã do computador numa coisa que se chama skip, como o detergente para a roupa. Aprendeu na universidade sénior, onde se fornecem às pessoas as ferramentas essenciais a manter uma janela aberta para o coração dos filhos. Que emigram.
Este bairro está cheio de velhos. Antes as casas eram escandalosamente caras porque os filhos pagavam o que fosse necessário para continuarem a viver aqui. Compravam os eletrodomésticos na loja da esquina, porque embora fossem mais caros do que nas cadeias dos centros comerciais, o senhor Manel ia lá a casa entregar e montava tudo. Não tinham que se preocupar com nada. Agora foram-se embora, não para o outro lado da cidade, mas para o outro lado do hemisfério. E o senhor Manel está a pensar em vender a loja aos chineses da rua principal. Quando se render, teremos a terceira loja de chineses no mesmo quarteirão.
A amiga da dona Graça não parece acreditar nisso de se verem as pessoas no ecrã do computador. De computadores, só sabe que tinha dinheiro guardado na lata das bolachas para comprar um ao neto, mas teve que o gastar numa operação às varizes que, no serviço nacional de saúde, demoraria mais anos do que aqueles que presumivelmente lhe restam.
A cigana regressa com uns óculos ray ban a cinco euros e explica-me que tem mesmo que vender alguma coisa. O marido está novamente preso e há umas senhoras da assistência que lhe querem tirar a filha mais nova. Digo-lhe que esteja descansada, que toda a gente sabe que o sistema não tira filhos aos ciganos. Olha-me ligeiramente ofendida.  
Do outro lado da esplanada, o maluco de serviço grita alto para quem o quer ouvir que precisa arranjar uma pistola, calibre 38, para assassinar o primeiro ministro. Explica com detalhes os efeitos que um bala de calibre 38 provoca na cabeça da vítima. As pessoas da esplanada não parecem chocadas. O maluco diz que o problema é que o melhor local para arranjar essas armas é a esquadra da polícia. E que, para isso, precisava de duas metralhadoras. Parece-me um beco sem saída. A esperança dos velhos da esplanada esmorece.
O senhor Fernando, apanhando o balanço do maluco, diz que o governo está cheio de gatunos e faz as contas ao que já lhe roubaram da reforma. Quase não chega para pagar o lar onde tiveram que internar a mulher depois do último AVC. A filha já tem dois empregos para suportar a prestação do andar que comprou, caríssimo, naquele bairro, e não tem vida para cuidar da mãe. Encolhe os ombros e diz que com o dinheiro que gasta no lar até podia ir de férias para as Caraíbas. É a vida da mulher entrevada e agarrada à cama, contra um mergulho numa praia de areias brancas e águas azuis.
O maluco diz que qualquer pessoa pode ir de férias para as Caraíbas. Acabou de chegar da agência bancária ali ao lado e viu umas pessoas vestidas de verde a descarregar sacos de dinheiro.
Os olhos dos velhos brilham. Sacos e sacos e sacos de dinheiro. Só precisava de uma pistola de calibre 38. Ia para as Caraíbas e nunca mais regressava.
A cigana diz que a culpa é toda dos tribunais. Se não deixam o marido traficar, como esperam que sustente os filhos?
Noutros tempos, os velhos teriam mandado o maluco calar-se. 
Mas hoje, com a imagem dos sacos de dinheiro ali ao lado, fiquei com a sensação que, cada um dos velhos, recordou com nostalgia aquele escombro de pistola que trouxe do ultramar, ou que herdou do avô e que, num gesto de boa vontade e respeito pela lei, entregou voluntariamente na esquadra do fundo.
Voltei para casa a pensar que a classe política deveria frequentar mais esta esplanada.

3 comentários:

  1. Sim, concordo. Teriam muito que aprender com os velhos e com o maluco. Ciganices já as sabem todas...

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  2. Mas disfarçada, não vá o maluco de serviço ter deitado a mão a alguma pistola.

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