Mandam as insondáveis razões de coerência, que as semanas horríveis terminem em noites de sexta-feira monocromaticamente horrorosas.
Já tinha disciplinado o cérebro para que não se expusesse ao risco do sonho e se limitasse a cumprir, espartilhado, a sua missão de me deixar dormir. A liberdade do sono é um exclusivo dos que nada têm a temer de si próprios e eu não faço parte desse grupo de privilegiados.
Mas esta semana todos insistem em desobedecer-me e até o meu próprio cérebro aderiu à última tendência fashion do verão que é a rebelião desorganizada contra as estruturas do poder instalado.
Passei dois terços da noite convencida que ainda vivia numa Ilha e, na violência do pesadelo, pensei tratar-se de um sonho.
Devo ter sido feliz.
Eram os tempos da inocência em que Orfeu tocava uma lira de melodia doce, Eurídice ainda não tinha sido mordida pela serpente e nenhum dos dois jogava ao galo nas escuras paredes de Hades.
No último terço, sonhei que a realidade traiu a mitologia. Na vida real não há romãs. Foi a Eurídice que Hades impôs a condição de não poder olhar para trás sob pena de deixar Orfeu, para sempre, enclausurado no reino dos mortos. Em troca, nada mais do que a salvação do único que ainda podia ser salvo. Aquele que não pertencia às caves subterrâneas e só ali chegou em condenada missão de resgate. Na vida real não há romãs.
Caso a subtileza do meu relance não tenha passado despercebida aos deuses, espero que a traição seja relevada pela rebeldia involuntária dos sonhos.
Orfeu viverá. Nem que isso me custe os olhos.
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