Choveu sem parar durante três dias e três noites. Na manhã do quarto dia o rio começou a lamber as ruas e as praças da cidade e entrou pelas frestas das portas de madeira. Primeiro molhou os sapatos de cetim cor-de-rosa que cobriam os pés da bailarina. Depois subiu pelas pernas das camas e transformou as almofadas em corações disformes de penas encharcadas.
Da janela do último andar eu vi a cidade como se já não lhe pertencesse.
O rio trouxe-nos muitas coisas. Sacos de plástico perdidos, folhas de papel que antes de serem borrão foram poemas, bacias de metal onde se lavaram cabelos, corpos de animais afogados, as flores de um jazigo próximo. Um piano. O rio trouxe-nos um piano que, preto e desdentado de teclas, encalhou entre o lixo e um sinal de trânsito e ficou ali a acusar-nos da falta de música.
Quando o nível da água chegou à mesa onde pousaste, esquecida, a minha caixa de jóias, o rio tomou-a, fez seus os nossos segredos e arrastou-os por todas as ruas da cidade, oferecendo-os, assim nus, a quem já não tivesse portas para deles se proteger.
Da janela do último andar eu vi a vida como se já não me pertencesses.
Uma caixa de madeira aberta flutuou pela corrente e transportou uma incansável bailarina de plástico que girava sobre si própria ao som de tchaikovsky.
isso é cano roto. nada que um bom picheleiro não resolva.
ResponderEliminarnoodles (com preguiça de abrir e-mail)