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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Diário de Bordo

Era Janeiro e fazia um frio glaciar.
Eles estavam os dois sentados a estudar numa desconfortável sala apinhada de gente. Cheirava a respiração, a medo e ao tédio.
Eram quatro da tarde e ele convidou-a para lanchar no café do outro lado da rua. Ela seguiu-o, hesitante e contrariada pela falta de tempo, a olhar para o relógio de plástico num cálculo de dividir por páginas as horas que lhe restavam antes da próxima aula.
Entraram numa tasca com ar sujo e enquanto ela olhava enjoada para os três bolos que constituam a opção disponível, ele mandou vir dois vodkas puros.
E quando ele lhe estendeu um dos copos em silêncio, ela levantou o olhar da vitrina enfeitada por moscas e, pela primeira vez, reparou naquele homem de sotaque cerrado, chegado de um uma ilha a mais de mil quilómetros, que teve a ousadia de presumir que ela bebesse vodkas puros às quatro da tarde, entre um pastel de nata e um livro de direito.
Nos anos que se seguiram, de todas as vezes que lhe perguntavam o que raio via ela numa pessoa tão obviamente diferente de si própria, haveria sempre de se lembrar do episódio do copo de vodka, ficar sem resposta convencional e atirar as culpas aos ombros de velejador treinado, herdeiro de genes de marinheiros e presidiários.
Sabia que não valia a pena explicar aos outros que se tinha apaixonado por um pirata. Assim, longe do seu navio no meio do Atlântico, ele parecia apenas uma parte daquilo que era: Alguém que não pertencia a nenhum lugar.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Outros amores proibidos

Elegia Azul

Clara, como talvez tu antes da última esquina da noite,
uma imagem redonda colava-se aos meus dedos por entre
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.
Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.
Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero ser teu intermitentemente em cada lua nossa.
Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes.
Rui Costa, in a Núvem Prateada das Pessoas Graves.