quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Diário de Bordo

Por longos trinta dias estivemos, no mais absoluto dos sigilos, embarcação, piratas e animais, estacionados na marina do Parque das Nações.
As razões são complexas e qualquer tentativa de as explicar sairia frustrada já que há verdades, sobretudo verdades motivacionais, que só o decurso do tempo tem a paciência de aclarar.
À tripulação disse apenas que, após dois anos de dura vida marítima, mereciam umas férias junto dos familiares e amigos. Disse-lhes que não o decidia por generosidade, mas antes por saber que tais contactos teriam a virtualidade de lhes revigorar a vontade de se manterem em fuga por, pelo menos, outros dois anos.
Mas este mês sabático foi determinado por causas muito mais terríveis. Desde o dia em que aterrei em Nova Iorque tenho estado acometida por uma silenciosa crise existencial que chegou a fazer perigar a minha carreira de Pirata.
O contacto com a civilização capitalista, as lojas da quinta avenida, os brunch do bryant park, as montras com modelos vivos da Abercrombie, as festas nos terraços de Manhattan, os almocinhos na esplanada em frente ao lago do central park, começaram a fazer-me duvidar da utilidade da minha missão, obrigando-me a autocríticas destrutivas centradas numa certa comparação com a figura de Ahab, o capitão louco e a sua obsessão pela Moby Dick.
O amor, nunca o escondi, é a minha miserável baleia branca. 
Dedicar a vida à sua destruição é propósito que não se questiona a bordo de um navio pirata onde a tripulação masculina é pouco amiga do banho, maioritariamente cadastrada e cuidadosamente escolhida pela sua fealdade. 
Mas em Nova Iorque vi-me exposta à propaganda capitalista do amor, a um Eros alto, musculoso e de caracóis mais louros e brilhantes, arco de design art decor, que domina a utilização de corações pintados nos prédios com mensagens discretas e sublimares a implorar por "love me". 
Os pérfidos efeitos da publicidade massiva ao amor abateram-se sobre mim ainda antes do jet lag se ter esfumado. E de repente, a indomável vontade de erguer um sabre contra tudo o que se assemelhasse a um coração palpitante, deu lugar à tenebrosa compulsão por revistas espanholas de noivas, encomendadas online. 
Somos sempre salvos pelos outros e é essa, afinal, a única razão pela qual não eremitamos definitivamente. 
Quando vi o meu olhar apaixonado espelhado no horror e pasmo da minha tripulação, percebi que estava perdida. 
Rumámos na mesma manhã a Lisboa, comigo escondida na minha camarata a experimentar véus de noiva, a copiar citações roubadas da internet para cartões vermelhos em forma de coração e a assistir compulsivamente a doses inumanas de episódios de telenovelas venezuelanas.
Três angustiantes semanas depois, a Pirata que há em mim estrangulou a gémea fofinha que me roubou o lugar no voo Nova Iorque - Lisboa.
Eu e estes bravos tripulantes partimos ontem. Em direção ao terror e ao saque e à glória e ao domínio dos mares. Todos cada vez mais fugitivos. Fugitivos, sobretudo, desse medo que vem do chão. 
Todos cada vez mais Piratas. 

4 comentários:

  1. Ó do barco, count me in !!!
    Levo um cúpido desdentado num saco da Primark, só por via de dúvidas... ou mata, ou atira a matar...

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