sábado, 8 de junho de 2013

destinatário desconhecido no local



No início da primavera, chegou a carta. 
Tinha-a esperado durante muitos meses. Passou horas a imaginar o momento em que alguém entraria com aquela carta na mão. Treinou a expressão desinteressada com que a olharia. O gesto casual com que estenderia a mão para a receber. Pensou na curta conversa de circunstância que teria de fazer para que não transparecesse a avidez pelo momento a sós. Convenceu-se que a carta chegaria numa segunda-feira e os domingos do inverno foram aquecidos pela antevisão de um envelope no dia seguinte. Mas aos domingos, seguiu-se a desilusão de segunda-feira. Sem que se saiba dizer quando, acabou por lhe perder a esperança.
Uma tarde, no regresso do almoço, encontrou-a já nascida e autónoma no meio da secretária. O envelope era branco e extraordinariamente imaculado, considerando a distância que teve que percorrer até chegar às suas mãos. Primeiro, analisou-lhe as datas dos carimbos, como se a única explicação possível fosse a carta ter-se perdido no circuito da distribuição postal e ter dado a volta ao mundo várias vezes até lhe ser entregue. Depois, tomou-lhe o peso e adivinhou-lhe três páginas. Ficou a olhar para ela durante uns minutos e decidiu que só a deveria abrir fora dali. Talvez em casa. Talvez numa praia deserta que lhe desse a dignidade dramática que merecia. 
Enfiou-a entre as páginas da agenda decidida a, naquele dia, sair mais cedo para se dedicar à atividade de ler a carta.
Mas esse dia prolongou-se pela noite e decidiu abri-la apenas no dia seguinte.
E no dia seguinte decidiu o mesmo. E no outro, e no outro e no outro.
A carta continuou fechada dentro da agenda onde desempenhou a útil função de marcador de todas as segundas-feiras.
Até ao dia em que, quando a ia fazer avançar mais uma semana, ficou parada a olhar para o seu nome escrito naquela caligrafia inclinada e decidida e percebeu, finalmente, a verdadeira razão pela qual não a abriu. 
A carta chegou muito depois de a verdadeira destinatária ter partido, levando consigo a mensagem do silêncio, que foi aquela que, em tempo, recebeu.
Não ler correspondência de outras pessoas é um escrúpulo. Não entregar recados a quem já não é deste mundo, um princípio de sanidade.
No desinteresse em devolvê-la ao remetente, atirou-a ao lixo.
Foi a mais eloquente carta de amor que nunca ninguém recebeu. 

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