quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Amigo, que saudades tuas

Como deves ter reparado, deixei cair o sotaque brasileiro que antes usava nos postais inter-continentais que te escrevia. De qualquer forma, aí para onde agora te mudaste, os sotaques não fazem sentido porque devem ter formas avançadas de comunicação onde nem sequer é necessário mexer os lábios ou esforçar as cordas vocais.
Como o meu processo de realização do mundo passa por te contar todas as coisas, a tua recente indisponibilidade para me ouvires deixou-me, qual zombie, refém num mundo paralelo em que o me acontece não chega a ser verdadeiro por falta de processamento.
Depois descobri esta solução de me fazer acreditar que podes ler-me em qualquer lado. Sabes como sou. Descubro sempre uma solução. Quase sempre passa por fazer-me acreditar em qualquer coisa disparatada.
Foi uma semana com penas de gaivotas espalhadas pela areia vazia da praia. É estranha e triste a ideia da praia vazia como o local onde as gaivotas vão perder as penas. Também havia uma espécie de bolhas de pastilha elástica com tons de azul que afinal eram tentáculos de águas vivas. Tudo isto foi parar à minha praia. E também um homem corpulento e grave que juntava aqueles selos dos maços de cigarros para comprar uma cadeira de rodas eléctrica. Precisava de cinco quilos daquilo. Não lhe perguntei se não seria mais rápido organizar um peditório. Os outros também têm direito às suas soluções. Tenho pensado no homem, grande, a pesar selos, levíssimos, e a acreditar optimisticamente que agora já só lhe faltam dez milhões. É um número ao acaso porque não imagino quanto pesa cada um dos selos. Há também a questão logística, claro. Sacos de selos empilhados até ao tecto dentro de um quarto com cama de solteiro. Isto da cama de solteiro é só porque gosto do conceito. Quase tanto como cama de “corpo e meio”. Que é outra daquelas coisas que nunca consegui perceber, mas sobre a qual tu terias imenso gosto em discorrer uma tese de três horas, se me tivesse lembrado de te expor este problema a tempo.
Em vez disso perdi o tempo que não imaginava que se esgotaria a ouvir-te dizer que morrer e lavar os dentes assume a mesma importância cósmica e outras tontarias sobre transferências de energia.
Importante mesmo é dizer-te que tenho uma nova ruga na testa. Quase que a senti formar-se ao longo da semana. Penas de gaivota e tentáculos de águas marinhas espalhados pela praia, pensando melhor, até foi a coisa menos triste que me aconteceu. E agora, ainda por cima, a tal ruga tornou-se verdadeira.
Da próxima, agradeço que vás antes lavar os dentes.

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