quarta-feira, 26 de março de 2025

Ao Longo da Muralha

 Ao longo da muralha que habitamos

Há palavras de vida há palavras de morte
Há palavras imensas,que esperam por nós
E outras frágeis,que deixaram de esperar
Há palavras acesas como barcos
E há palavras homens,palavras que guardam
O seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras,surdamente,
As mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras e nocturnas palavras gemidos
Palavras que nos sobem ilegíveis À boca
Palavras diamantes palavras nunca escritas
Palavras impossíveis de escrever
Por não termos connosco cordas de violinos
Nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
E os braços dos amantes escrevem muito alto
Muito além da azul onde oxidados morrem
Palavras maternais só sombra só soluço
Só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
E entre nós e as palavras, o nosso dever falar.


Mário Cesariny

sábado, 22 de março de 2025

Andorinhas de porcelana desfeitas no chão

À noite, ao segundo dia da tempestade, o vento surpreendeu-nos na cama. 
Por mais cuidado que se empenhe na vedação das portas e janelas, por mais obsessão que se gaste na construção de um bunker, a verdade é que, no amor e na arquitetura, hão de sempre existir frinchas invisíveis a olho nu, por onde por onde o mal se expande de fora para dentro. 
Enquanto lá fora o vento arrancava das floreiras as hortenses e contra as portadas fechadas atirava toda a sorte de pequenos objetos, cá dentro, um sistema autónomo de altas e baixas pressões desencadeou um ciclone em cujo vértice desapareceram todas as coisas. Usei a habitual técnica de sobrevivência que consiste em sair do meu corpo e pairar sobre a realidade física olhando-a com a superioridade do espectador. Nunca falha. O desfile da mesquinhez, da maldade, da arrogância e da intolerância exerce um tal horror que torna inútil saber quem se distinguiu com os melhores fatos. 
Antes do amanhecer já tudo tinha passado. Os gritos histéricos do vento foram substituídos pelo canto das ondas. Cá dentro, a cama estava arrumada num silêncio branco e eu pude reocupar o meu próprio corpo.
Porém, quando me levantei para o pequeno almoço e segui um raio de sol até à varanda da frente, encontrei, desfeita em cacos no chão, vítima da tempestade, a andorinha, símbolo da alegria, da resiliência e do renascer da primavera, que quando chegámos a esta casa pendurámos a duas mãos. 

domingo, 9 de março de 2025

Only lovers will survive

desce o azul dos sonhos pelas paredes do quarto e afinal são olhos que espiam os meus pés nus. O lençol é um areal iluminado pelos raios onde, nas piores noites, descalça, danço uma cantiga de facas e rosas que deixam espinhos nos lábios. Mas depois espalha-se a aurora pelas ruas e há ecos de gente e dissipa-se o sangue. A dor é endémica. Porém, se evitar os espelhos, se pisar cuidadosamente  o fio do dia, se não ouvir as risadas dos loucos, se não me cruzar com um animal doente, ainda consigo acreditar que o amor, mas apenas o amor, nos pode salvar. 

O pecado da certeza

Na homilia de hoje, o Padre Flávio de todos os tunnings, falou-nos sobre a certeza e os seus perigos e armadilhas, garantindo-me, olhos nos olhos, como se apenas os dois estivéssemos na igreja, que a certeza é o pior de todos os pecados. Sucede que as certezas - a relativa, a absoluta e sobretudo a certeza possível - são a pedra prima do meu ofício e, por isso mesmo, fui dominada pelo pânico e pela vergonha quando cogitei que o Padre Flávio pudesse ter descoberto o meu segredo e toda a homilia fosse um processo de desaprovação pública por parte do meu novo povo. Com medo de ser cancelada, ainda ensaiei o suborno con uma esmola despropositadamente alta que só serviu para criar desconfianças no bom Pastor.
Fui a primeira a sair. 
Cá fora, o vento demoníaco espalhou a areia da praia que me entrou nas narinas e nos ouvidos e como uma mão imaginária no meio das costas empurrou-me até casa. 
Fui encontrar o capitão Strut em frente de um tabuleiro de xadrez, a ouvir Django Reinhardt e logo partilhei as minhas preocupações. 
- Não vais nada ser cancelada. Não vês que o teu padre plagiou um sermão do “Conclave”? 

quinta-feira, 6 de março de 2025

Metáfora da tristeza

Uma traineira que regressa da pesca vazia de gaivotas.

domingo, 2 de março de 2025

Missa

Encantada pelo chamamento dos sinos desta minha nova terra, que tocam com inusitada alegria aos domingos de manhã, criei o hábito de ir à missa. Pirata assassina pragmática cética, é bom de ver que não me aconteceu nada tão radical como, sequer, passar a admitir a possibilidade da existência de um Deus. 
O que sucede é que para obter boa comida foi necessário aplacar a desconfiança destas gentes e, por comparação com a tasca dos bebados ou a atividade coletiva de remendar redes, a missa de domingo pareceu-me um ato social muito interessante.
Chego sempre cinco minutos adiantada, quando a primeira fila já foi ocupada pelas viúvas dos pescadores e a segunda apresenta uma composição mista de comerciantes e coscuvilheiras locais, nalguns casos, em acumulação de funções.
A terceira e última fila - que a diocese só se dispôs a salvar uma média de vinte almas - é apenas minha e de um ou outro caravanista espanhol que, ao engano ou impedido de fugir pelo nevoeiro, passou o fim de semana junto às dunas.
O Padre Flávio é um miúdo com pouco mais de trinta anos tão inusitadamente alegre como os sinos do chamamento. Todos os domingos, antes de abalar no seu citroen cheio de cenas tunning, fala a esta gente sobre resiliência, redenção e revisitação dos pecados. E promete que “a angústia de ter perdido não supera a alegria de ter um dia possuído”.
O Padre Flávio pode ter lido Santo Agostinho, mas não sabe que as viúvas dos pescadores já intuem mais sobre resiliência do que todos os santos retratados nas esculturas bolorentas pregadas junto ao altar.
Termina sempre a missa com os avisos do IPMA, invariavelmente aquém da fustigação que a natureza nos dedica e com esse impagável serviço público que consiste em dizer-nos a hora do preia-mar. 
À saída, evito o olhar de contagiosa nostalgia das viúvas dos pescadores, ensaio um aceno digno ao Padre Flávio e sorrio aos peixeiros, ao talhante e à mulher das frutas. Sabem que não sou um deles, mas não é ainda esta semana que vão deixar de me abastecer a despensa.