sexta-feira, 24 de junho de 2011

Raptaram os velhos da praça




Regressei ontem a esta terra após dez dias de angustiada ausência.
Privada da planície, sofri uma ressaca tão violenta como a da abstinência de cafeína. Na falta da linha do horizonte ao alcance de um piscar de olhos fui dominada pela estranha sensação de que o mundo inteiro encolheu. Não me sentia assim desde a última vez que fiz uma viagem de onze horas num daqueles aviões concebidos para passageiros sem pernas.
Pus-me ao caminho antes de anoitecer com o duplo objectivo de evitar o massacre de mais lebres na estrada e de ainda chegar a tempo de um jogo da poker com os velhos da praça. Os últimos dias na cidade abalaram o meu orçamento mensal e planeei constituir um fundo para ir aos saldos com dinheiro extorquido à reforma dos velhos. O pequeno pormenor de não ter jeito para o jogo resolver-se-ia com o facto de ser eu a ensinar-lhes as regras.
Mas, pela primeira vez, os velhos da praça não estavam no seu lugar.
Ainda pensei que se tivessem debandado para um qualquer bailarico clandestino na sede da “associação cultural”. Fui lá ver e nada. Esperei pelo final da hora do jantar. Nada na mesma. Tentei atraí-los com a invencível fórmula janelas abertas mais Puccini a tocar dentro de casa. Outra vez, nada de velhos.
Com o programa da noite arruinado por falta de comparência dos artistas principais, deu-me para ir vigiar as actividades do faroleiro. Voltei para casa frustrada depois de confirmar que a luz continua a demorar 63 segundos a dar uma volta completa e que o faroleiro continua a não se deixar ver. Entretanto, alguém me explicou que aquilo é tudo orientado por computador e que o Faroleiro, se calhar, com a crise, já nem sequer existe.
Achei que o desaparecimento dos velhos cabia no conceito de "problema com suficiente densidade para justificar um telefonema ao meu senhorio". Atendeu-me uma espanhola a dizer que o telefone estava desligado.
Adormeci amuada mas acordei reconciliada com a desfeita. Ensaiei o meu melhor sorriso para o oferecer aos olhares impávidos que fixam as minhas janelas quando, todas as manhãs, abro as portadas e os encontro nos seus postos a vigiar a minha vida.
Deparei-me com uma praça novamente vazia.
Fui pedir satisfações à falsa dona da papelaria de fachada que me informou que os velhos foram, ontem ao amanhecer, recolhidos por um daqueles autocarros de cinquenta lugares. Ela ainda tentou convencer-me que foram em excursão ao centro comercial Vasco da Gama. Mas isto é a terra em que nada é o que parece e eu sou aquela que não acredita em ninguém.
Desconfiada que o meu senhorio os levou para um campo de treino da Mossad, algures do outro lado da fronteira, telefonei para a GNR para reportar o desaparecimento de uma povoação inteira.
Infelizmente, os GNRs tinham ar de quem não se deixaria enganar no poker e, com isto tudo, amanhã não tenho dinheiro para ir gastar nos saldos.

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