quinta-feira, 1 de abril de 2010

Uma vida branca


Este quarto não é meu.
Os uivos dos cães lá fora não são compatíveis com a minha nova existência. Só sei dormir no silêncio.
Clarabóias com luares apenas servem para iluminar o rasto dos anos que me separaram de mim. Só sei dormir no escuro.
As borboletas penduradas nas cortinas insultam o pouco de adulto que consegui conquistar à idade. Só sei dormir na quietude.
O pequeno sofá branco não tem a forma do meu corpo.
Gostava de conseguir chamar casa ao mausoléu familiar onde apodreceu a minha alma. Mas ela passou ao estado gasoso, usou a chaminé para se libertar e espalhou-se pela atmosfera.
Cá dentro ninguém deu por isso. As sombras dos objectos têm a mesma dimensão de há vinte anos. Tentaram congelar-me dentro dos roupeiros à força de naftalinas que conservam roupas que nunca ninguém há-de voltar a vestir. Os meus diários continuam desordenadamente esquecidos dos dentro de gavetas que o tempo inchou.
As fotografias espalhadas pelos cantos não ajudam. Eu ainda me olho com uma curiosidade inocente, a perguntar-me quem há-de ser a mulher que um dia atirará para a lareira os vestígios da infância em forma de celulose.
Os espelhos poderiam responder, mas ninguém lhes pergunta nada.
Onde os outros vêem regressos passageiros, eu observo confrontos definitivos. Só o presente pode ganhar, porque o passado já perdeu por falta de comparência.
Quando acabar a semana vou levar comigo os diários e atirá-los pela conduta do lixo do meu ecológico prédio onde se situa o meu asséptico apartamento, do qual faz parte o meu verdadeiro quarto.
Onde se vive uma vida branca.

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