quarta-feira, 21 de abril de 2010

Almoço no Parque





Esperas por mim em frente da porta do restaurante. Mesmo que esteja a chover ou que faça frio, tu não vais entrar no restaurante enquanto eu não chegar. Vais ser aquele ponto vertical como uma árvore que se humaniza com a proximidade. Mesmo que esteja sol tu vais estar imóvel, à porta, à minha espera.
Vais fazer um gesto na direcção do meu rosto, desviar os teus lábios no último segundo, assentá-los no vazio da minha cara voltada. Tocar os meus cabelos. Talvez. A memória do corpo. Talvez.
Hás-de me indicar a entrada como se eu fosse incapaz de a descobrir sozinha. Perguntar ao empregado de smoking usado onde nos podemos sentar na sala vazia. Hás-de escolher sempre a mesma mesa.
Cinco minutos depois os nossos corpos reconhecem-se como uma cadela mãe separada do cachorro filho à nascença. Nós estaremos muito longe desse processo físico.
Tens o mesmo olhar de censura perante o meu pão com manteiga. Tenho o mesmo olhar de desdém perante os teus novos botões de punho.
Não teremos nada para dizer um ao outro, porque já dissemos todas as palavras do mundo e elas eram tão falsas como o pôr-do-sol amarelo na parede de uma agência de viagens, por trás de uma secretária vazia.
Almoçamos num silêncio que já nem sequer é confortável.
Ou melhor, tu almoças e eu espalho a comida no prato.
E foi sempre assim entre nós.
Vais pedir a conta quando eu estiver exactamente a meio do meu café. Já estará paga quando eu o terminar.
Vais esperar que me levante para te levantares depois de mim. À saída tocas-me com uma mão nas costas. Quando eu não puder ver a tua expressão de nostalgia reprimida. No instante em que me voltar para ti já terás retomado o controlo absoluto dos teus músculos faciais, da tua existência e da nossa história. Despedes-te com meio abraço desajeitado e um beijo na testa. Serás um ponto vertical como uma árvore que se desumaniza daqui a cinco minutos. Ao longe.
Insistimos nesta tortura social porque é menos selvática que o cilício e tem o mesmo efeito purificador.
Somos tão civilizadamente desconhecidos como donos de dois cães que os passeiam no parque para que troquem memórias de cheiros.
Entretanto, tu almoçaste e eu espalhei a comida no prato.

2 comentários:

  1. Como é que uma coisa tão boa pode ser tão má...?

    ...

    Pode. Porque é possível juntar às sardinhas em lata, chocolate de leite;
    e ao arroz de pimentos, chantilly.

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  2. pois. é mesmo assim. realmente, pior combinação que a primeira só mesmo a que tu acabaste de inventar.

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