Seria de pensar que, sendo capitã de um navio Pirata - para mais um navio Pirata rico e sofisticado, onde depois da venda do crude roubado pudemos todos regressar ao estado de prodigalidade em que gostamos de viver - tivesse, ao menos, o poder de mandar cancelar o Natal.
Atolada nessa errónea convicção, aos primeiros sinais de tráfico de bolas douradas e folhas de azevinho de aspeto duvidoso, decidi reunir a tripulação no convés para lhes comunicar que, este ano e, pelo menos nos próximos mil, o natal seria temporariamente suspenso.
Em menos de meia hora a minha tripulação organizou-se contra mim, fundou uma associação sindical e, decidida a nem sequer me dirigir a palavra, mandou Polly, o papagaio emprestado, notificar-me do aviso de greve geral e por tempo indeterminado. Até o bicho estava notoriamente zangado comigo e cumprindo com excesso de zelo a missão que lhe acometeram passou vinte minutos contados em rolex de ouro a gritar-me aos ouvidos palavras de ordem como "a luta continua, capitã Cuca para a rua" e versos da Grândola Vila Morena.
A ameaça de greve não seria suficiente para me demover das minhas intenções, já que, não tendo nós nenhum ataque planeado para esta semana, e sendo certo que neste navio, com exceção de Andhrimnir, o cozinheiro Pirata, ninguém faz rigorosamente nada, a medida pareceu-me vagamente inócua. Aquilo que eu não consegui suportar foi a exclusão social a que me vetaram, recusando-se a sentar na minha mesa, falando mal de mim a toda a hora e na minha presença e fazendo-me sentir tão odiada que quase parecia que estava de volta aos tempos em que ainda era uma cidadã honrada com uma dessas profissões em que ser detestado por toda a gente faz parte de uma tradição milenar.
Ao segundo dia, a angústia do ostracismo, no plano emocional, e o receio de um golpe de estado, no plano racional, fizeram-me meter no bolso a urticária aos barretes vermelhos com pelo branco, anjinhos, pinheiros nórdicos, embrulhos com laços pirosos, cânticos enjoativos, luzes multicolores e subjacente estado geral de despropositada benevolência e lá os chamei outra vez ao convés para lhes comunicar a reposição do natal.
Como nem sequer apareceram tive que mandar recado pelo papagaio que passou as duas horas seguintes plantado no mastro a gritar um nada cristão"É Natal, é Natal, limpa-te ao jornal".
Logo que a notícia se espalhou, sacaram dos baús toda a espécie de tralha que andaram a traficar clandestinamente na última semana e em menos de meia hora transformaram este navio numa odiosa Vila Natal. Ainda tentei fazê-los entender que as luzes de arraial com que forraram o navio inteiro não são apropriadas à discrição que se exige a foragidos da justiça. Não quiseram saber e, como forma de retaliação, depuseram as pernas de pau, ganchos, tapa-olhos e lenços e agora passeiam-se por aí mascarados de duende, rena, pai-natal e - presumo eu, depois de ter visto Gualtiero, o Italiano a tomar o pequeno almoço em pelota - menino jesus.
Num esforço de reconciliação que, ao mesmo tempo, me garante que terei do natal a única coisa que lhe tolero, decidi gastar parte do nosso pecúlio na contratação de uma companhia de ballet russo para que aqui venha encenar o Quebra Nozes.
Os americanos dizem que ninguém escapa à morte e aos impostos. Estão evidentemente enganados. Aquilo a quem ninguém escapa é ao Natal.