Um dos maiores inconvenientes das redes sociais é tornarem impossível o exercício do direito ao esquecimento. O esquecimento, na sua mais doce obliteração absoluta da nossa memória. Aquele esquecimento tão completo que ficamos de de boca ligeiramente aberta e olhar espantado quando dois ou três anos depois a televisão, um amigo, uma fotografia esquecida, nos lembra que no mundo, para além das outras de que nos lembramos, também existe aquela pessoa.
As redes sociais roubam-nos o exercício desse direito sadio. As pessoas saem das nossas vidas mas continuam a ocupar espaço no nosso computador. São músicas cheias de sentidos equívocos em que o you tanto podemos ser nós, como a anterior, a próxima ou oneself; são frases enigmáticas a denunciar estados de espírito misteriosos; são comentários idiotas que nos fazem perguntar se a pessoa está drogada ou se nós é que em tempos estivemos drogados; são rostos espalhados por toda a parte; o perfil do lado direito com uma praia conhecida em plano de fundo; o perfil do lado esquerdo com uma estante onde reparamos num livro novo.
É a brutal exibição pública dos detalhes da felicidade doméstica a afrontar o nosso direito de querer que o outro desapareça.
Uma pequena morte, uma morte privada, uma morte só nossa...
É o direito a essa forma de morte do outro que as redes sociais nos tiram. Não podemos ignorar quem continua a respirar a vinte centímetros do nosso pescoço. E não podemos desamigá-los porque isso seria uma declaração pública de não indiferença. Seria uma ainda forma de comunicação. Uma cobarde confissão de incómodo.
Eles estão ali e é como se tivéssemos que viver com eles para sempre sentados no sofá da sala.
Numa perspectiva prática, diria que se pode tirar do "feed" principal sem desamigar. Numa perspectiva mais vasta, essa é a sina que Borges descreve em "Funes, o Memorioso" e que antecede as redes sociais. O que antes era a sina de Funes, passou a ser a de todos nós. Memoriosos, sim, funestamente.
ResponderEliminarBoa tarde, Cuca.
Ainda assim, Funes foi compensado por uma estupidez natural. Torna-se menos funesto no caso dele :)
Eliminar(foi esse o livro que me fez descobrir a Anne Bonny e decidir tornar-me Pirata)
Eliminar"Otra pirata de esos mares fue Anne Bonney, que era una irlandesa resplandeciente, de senos altos y de pelo fogoso, que más de una vez arriesgó su cuerpo en el abordaje de naves. Fue compañera de armas de Mary Read, y finalmente de horca. Su amante, el capitán John Rackam, tuvo también su nudo corredizo en esa función. Anne, despectiva, dio con esta áspera variante de la reconvención de Aixa a Boabdil: "Si te hubieras batido como un hombre no te ahorcarían como a un perro"."
ResponderEliminarNão foi bem esse livro -- Anne Bonny aparece na "Historia Universal de La Infamia" e Funes no "Ficciones", mas é um pequeno pormenor :)
Devo a ambos alguns dos momentos mais memoráveis da minha vida -- não memoráveis no sentido de Funes, mas memoráveis numa escala mais humana.
Ia jurar que tenho as duas estórias reunidas no mesmo livro... vou verificar isso.
EliminarEu tenho, nas Obras Completas, publicadas no original pela Emecê; em Portugal, julgo que pela Teorema; originalmente, contudo, foram em livros e épocas de vida diferentes -- detalhes sem importância. :)
EliminarSó para clarificar, eu não estou drogado, sou mesmo assim...Caso essa dúvida alguma vez surja.
ResponderEliminarOh, isso é o que dizem todos :)
EliminarEu também não costumo estar muito para lá. Tenho sim frequentes e embaraçosas perdas de memória... Tem dias que são um benção nada FUNESta.
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