Numa tentativa de aplacar o meu mau humor da última semana, e sabedores das minhas manias do domingo como dia de elevação espiritual, ontem, a tripulação decidiu organizar uma sessão de cinema surpresa.
Gualtiero, o Italiano, com a ajuda de dois dos ex- presidiários, pirateou na net o filme Tabu; as bloggers fizeram pipocas salgadas com recurso a uma receita milenar; Álvaro de Campos, o engenheiro, menos alcoolizado do que o habitual e com a colaboração do resto dos ex-presidiários, construiu uma pequena sala de cinema dentro da piscina; Adhriminir, o cozinheiro pirata usou a bimby para nos fazer um mojitos e os poetas preparam uma bonita apresentação do filme em que não faltaram as metáforas sobre amores impossíveis e intrépidos exploradores que almejam sentir na carne as dentadas de um crocodilo melancólico.
Assisti à sessão sentada ao lado do meu ex senhorio da planície, o israelita da Mossad que, insistindo em manter o disfarce de pacato alentejano, fingiu dormir dois terços do filme.
No final da sessão, contagiada pela consternação da plateia com a intensidade do drama romântico, levantei-me, pedi desculpas pelo meu humor e justifiquei-o com um desgosto amoroso.
Nessa altura, o Israelita da Mossad fingiu acordar, limpou o fio de baba que deixou escorrer pelo queixo para dar um ar realista à falsa soneca, ensaiou uma expressão estupefacta e perguntou de forma não completamente impertinente:
- Homessa... mas se está aqui fechada neste navio e não anda com ninguém... como conseguiu arranjar forma de lhe partirem o coração?
Expliquei-lhe, com a paciência que me caracteriza, que apesar de tecnicamente ainda não me terem partido o coração, tendo eu desenvolvido um recente interesse por um homem é certo e sabido que tal acabará por acontecer. E que, assim sendo, decidi queimar todas as etapas intermédias e, evitando perder mais tempo, entreguei-me já à fase final do processo que consiste em deixar-me cair num profundo e intenso estado de desgosto.
A minha tripulação, pese embora tenha deixado transparecer alguma dificuldade em perceber o meu argumento, mostrou-se mais empática do que seria de esperar.
Álvaro de Campos, que ontem estava num dos seus melhores dias, escreveu mesmo um poema para mim, que, generosamente, passou a recitar:
A minha
alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu
pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das
mãos de criada descuidada.
Caiu,
fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira?
Impossível? Sei lá!
Tenho mais
sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um
espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz
barulho na queda como um vaso que se partia.
Os
deuses que há debruçaram-se do parapeito da escada.
E fitam
os cacos que a criada deles dez de mim.
(...)
Ia ele neste verso quando foi abruptamente interrompido pelo meu ex-senhorio, Israelita da Mossad que, tornou-se claro, tinha passado os últimos minutos à procura de uma solução.
- Você precisa urgentemente ir para a cama com alguém...
Constatei que não me tratou por tu e fiquei satisfeita por, finalmente, ter adoptado para comigo um tratamento respeitoso.
Os domingos são dias bons.