quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Álvaro de Campos, esse Pirata




Ao largo da Sardenha, fazendo-se transportar num barco insuflável de criança, pediu admissão a bordo um tal de Álvaro de Campos, que se disse Engenheiro Naval e candidato a Pirata.
Tivemos a seguinte conversa:

- Não sei, não. O senhor disse que escreve poesia e eu já tenho escritores entre a minha tripulação. Se ao menos fosse anão…sempre podia aceitá-lo ao abrigo de uma quota especial. Apesar de também já ter um gigante…
Mas diga-me lá… o que o faz querer aderir à dura vida de Pirata?

- Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
(…)

- hum… estou a ver. Mas olhe que este navio não é lugar para nostalgias nem para delírios metafísicos. Além disso, estamos todos aqui para fugir e não para ser encontrados. Especialmente por nós próprios. Tem experiência profissional no ramo da Pirataria?

- (…)Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

- Pois, quem sabe? olhe, eu é que não sei… talvez tenha alguém que possa dar referências suas… mas, afinal, o que o seduz nesta vida da Pirataria?

- (...) Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O indico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

- hum… mas isso são argumentos mais válidos para fazer um cruzeiro do que para tornar-se Pirata. Além do mais, essa conversa de querer morrer não me cai nada bem. Somos um projeto homicida e não suicida. Não estou a ver em que medida possa tornar-se um acréscimo válido.

  - Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
(...)

- Compreendo. Mas engenheiros, civilizados e educados no estrangeiro, também já temos. E olhe que, até agora, deixe que lhe diga que a única diferença que fizeram relativamente aos ex-presidiários foi embebedar-se com maior elegância.Vai dar-me referências, ou não?

- (...) Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas,
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas.

- Pois, mas Jim Barns… não conheço. E hoje estamos sem net, não dá para ir ver à wikkipedia. Mas já que diz que sabe entoar o nosso grito, gostaria de ouvir isso.

- Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...)

- Muito bem. Começo a ficar impressionada. As suas motivações é que não me deixam nada convencida. Quer explicar-se melhor?

- Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!

- Amores passados que volvem com força para nos puxar soa-me a golpe baixo de quem andou a ler o meu blogue para me tentar manipular. Tem noção que nem sequer viajamos com destino traçado?

- Ah seja como for, seja por onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

- E o que diria à minha tripulação, que já não conta com novos recrutamentos e que teria que dividir o espaço consigo?

- Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
(…)

A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados.
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!
Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!

Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
(…)

- hum… só se o contratar para realizar trabalhos pesados. Aqui neste navio ninguém parece disposto a trabalhar...

- (...) Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, fira-os!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das coisas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqüilos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar pra Morte com dor, voluptuosamente,
Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!

Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas.
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra aos velhos navios!
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!(...)

- Bem, se está assim tão disponível para ser torturado… considere-se contratado (se tudo falhar, entrego-o ao viking louco).

- (...) Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:

                                           Fifteen men on the Dead Man's Chest.
                                           Yo-ho ho and a bottle of rum I

E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby,

Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! (...)

- Vejo que isto era mesmo importante para si. Agora acalme-se, vá.

- (…)Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

De repente estala-me sobre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:

Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy..
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy... (...)

- Tenha calma, já lhe disse. E não exagere que até nos faz parecer um bando de psicopatas.

- O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me convosco, piratas!

- oh meu deus… começo a desconfiar que este tipo me vai trazer problemas…

Os excertos são da Ode Marítima, de Álvaro de Campos e as antecipadas desculpas aos puristas de Fernando Pessoa são minhas. Foi-me irresistível.

"Oh you'll never see my shade or hear the sound of my feet while there's a moon over bourbon street"




Há quem faça tatuagens para cobrir as anteriores. Aquelas que a pele já não consegue suportar.

Há quem rasure as memórias diretamente no calendário. Criando novas efemérides para colar por cima das antigas.

Caiu um ano. 

Diz-se que, lá longe, a data foi comemorada com um concerto de jazz derramado sobre uma praia que é minha.
Uma multidão de surdos aplaudiu de pé o sacrilégio que até a lua se recusou a iluminar.
A lua, está sempre comigo. Também me pertence.

"She walks everyday through the streets of New Orleans
She's innocent and young from a family of means
I have stood many times outside her window at night
To struggle with my instinct in the pale moon light
How could I be this way when I pray to God above
I must love what I destroy and destroy the thing I love
Oh you'll never see my shade or hear the sound of my feet
While there's a moon over Bourbon Street"

Amar o que se destrói e destruir o que se ama, antes de ser um verso desta música, já era a incontornável sina dos cobardes.


domingo, 18 de agosto de 2013

the after the afterlife




enquanto o sol de Lisboa me aquecer os pés, enquanto houver regaee no cimo de telhados com vista para o Tejo, enquanto a hortelã se dissolver no gelado de limão, enquanto os gatos se espreguiçarem, enquanto existir o rasto de um veleiro, enquanto as nuvens tiverem formas de pássaro, enquanto souber comover-me com um verso…


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Café da manhã


A cigana oferece-me a possibilidade de comprar uma mala igualzinha àquela que carrego por apenas quarenta euros. Diz que é uma imitação de qualidade superior à minha, original, mal acabada.
A dona Graça está triste. Partiu-lhe há uma semana para a Alemanha a filha mais nova. O mais velho já se tinha ido para Angola no ano passado e este verão nem sequer voltou para ver a família. Tem uma nova namorada. Angolana. A dona Graça não está entusiasmada com a possibilidade abstrata de ter netos de tez escura. Conta à amiga que agora vê a filha através do ecrã do computador numa coisa que se chama skip, como o detergente para a roupa. Aprendeu na universidade sénior, onde se fornecem às pessoas as ferramentas essenciais a manter uma janela aberta para o coração dos filhos. Que emigram.
Este bairro está cheio de velhos. Antes as casas eram escandalosamente caras porque os filhos pagavam o que fosse necessário para continuarem a viver aqui. Compravam os eletrodomésticos na loja da esquina, porque embora fossem mais caros do que nas cadeias dos centros comerciais, o senhor Manel ia lá a casa entregar e montava tudo. Não tinham que se preocupar com nada. Agora foram-se embora, não para o outro lado da cidade, mas para o outro lado do hemisfério. E o senhor Manel está a pensar em vender a loja aos chineses da rua principal. Quando se render, teremos a terceira loja de chineses no mesmo quarteirão.
A amiga da dona Graça não parece acreditar nisso de se verem as pessoas no ecrã do computador. De computadores, só sabe que tinha dinheiro guardado na lata das bolachas para comprar um ao neto, mas teve que o gastar numa operação às varizes que, no serviço nacional de saúde, demoraria mais anos do que aqueles que presumivelmente lhe restam.
A cigana regressa com uns óculos ray ban a cinco euros e explica-me que tem mesmo que vender alguma coisa. O marido está novamente preso e há umas senhoras da assistência que lhe querem tirar a filha mais nova. Digo-lhe que esteja descansada, que toda a gente sabe que o sistema não tira filhos aos ciganos. Olha-me ligeiramente ofendida.  
Do outro lado da esplanada, o maluco de serviço grita alto para quem o quer ouvir que precisa arranjar uma pistola, calibre 38, para assassinar o primeiro ministro. Explica com detalhes os efeitos que um bala de calibre 38 provoca na cabeça da vítima. As pessoas da esplanada não parecem chocadas. O maluco diz que o problema é que o melhor local para arranjar essas armas é a esquadra da polícia. E que, para isso, precisava de duas metralhadoras. Parece-me um beco sem saída. A esperança dos velhos da esplanada esmorece.
O senhor Fernando, apanhando o balanço do maluco, diz que o governo está cheio de gatunos e faz as contas ao que já lhe roubaram da reforma. Quase não chega para pagar o lar onde tiveram que internar a mulher depois do último AVC. A filha já tem dois empregos para suportar a prestação do andar que comprou, caríssimo, naquele bairro, e não tem vida para cuidar da mãe. Encolhe os ombros e diz que com o dinheiro que gasta no lar até podia ir de férias para as Caraíbas. É a vida da mulher entrevada e agarrada à cama, contra um mergulho numa praia de areias brancas e águas azuis.
O maluco diz que qualquer pessoa pode ir de férias para as Caraíbas. Acabou de chegar da agência bancária ali ao lado e viu umas pessoas vestidas de verde a descarregar sacos de dinheiro.
Os olhos dos velhos brilham. Sacos e sacos e sacos de dinheiro. Só precisava de uma pistola de calibre 38. Ia para as Caraíbas e nunca mais regressava.
A cigana diz que a culpa é toda dos tribunais. Se não deixam o marido traficar, como esperam que sustente os filhos?
Noutros tempos, os velhos teriam mandado o maluco calar-se. 
Mas hoje, com a imagem dos sacos de dinheiro ali ao lado, fiquei com a sensação que, cada um dos velhos, recordou com nostalgia aquele escombro de pistola que trouxe do ultramar, ou que herdou do avô e que, num gesto de boa vontade e respeito pela lei, entregou voluntariamente na esquadra do fundo.
Voltei para casa a pensar que a classe política deveria frequentar mais esta esplanada.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

À saída do Inferno

(...) "Pensas nesta altura
que estás além do centro onde eu prendia
a pele ao verme vil que o mundo fura.
De lá tu foste enquanto eu me descia;
mas quando me voltei tinhas passado
ponto que a todo o peso atrai a via.
E ao hemisfério ora te eis chegado
oposto ao que recobre a grande seca,
sob o tecto da qual sacrificado
foi quem nasceu, viveu e em nada peca;
os pés tens postos na pequena esfera
que a outra face faz de ti Judeca.
Se é cá manhã, já lá anoitecera:
e este que a nós co pêlo escada deu,
tão cravado inda está como antes era.
Desta parte tombou vindo do céu;
e a terra que aqui antes se estendia,
do medo que lhe vem fez do mar véu,
vindo ao nosso hemisfério; e então seria
que fugindo, lhes esvaziou ignoto
lugar a que ali vês e que acendia."
Há um lugar a Belzebu remoto
tanto quanto esta gruta já se estende,
que, não por vista, mas por som é noto
de um regato que por ali descende
da boca de um rebordo pedregoso
rói o corso que faz e pouco pende.
Nesse caminho pouco luminoso
entrámos por voltar ao claro mundo;
e sem cuidar de ter algum repouso,
subimos, antes ele e eu segundo,
tanto que eu vi enfim as cousas belas
que tem o céu, por um buraco ao fundo;
e saímos voltando a ver estrelas.

A Divina Comédia, Dante Alighieri, Canto XXXIV Tradução de Vasco Graça Moura, Quetzal

Post it: Se vais deixar a leitura da Divina Comédia a meio durante vários meses, talvez não seja boa ideia fazê-lo enquanto ainda estiveres no Inferno.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Diário de bordo #1


Latitude 39 12' 26 N
Longitude 9 8' 4 E

Daqui de onde vos escrevo, sentada na chaise long philippe starck que mandei instalar na zona Sul do convés, vê-se a Sardenha.
Não escondo que quando há cerca de dez dias abandonámos uma famosa marina Algarvia para dar início a esta aventura, tinha em mente um programa mais agressivo. De acordo com os meus planos, por esta altura, já deveríamos ter abordado pelo menos três iates de luxo, feito reféns os proprietários e sido notícia de abertura de oito telejornais.
No entanto, depois de dois dias de navegação e alguns mojitos (sou suficientemente segura da minha condição de pirata para não me obrigar a beber rum em exclusividade) perdi a pressa de aterrorizar pessoas e tornar-me dona dos mares e anuí democraticamente à vontade da maioria da minha tripulação, que parece estar mais inclinada para o ócio de um cruzeiro de luxo do que para o afã da vida de pirata.
Até os ex presidiários, logo que entrámos em águas espanholas, perderam o seu ar agressivo e revoltado e saltaram dos camarotes para o convés armados com coloridos calções billabong e toalhinha na mão, deitando-se ao sol, cada um a ler o seu policial preferido.
De todos, o grupo dos bloguers convidados, é o que parece menos empenhado em entregar-se ao domínio dos mares. Depois de terem descoberto que apanhavam wireless free no cimo do mastro, é vê-los a fazer fila, de portátil e iPad debaixo do braço com a desculpa da necessidade de actualização dos blogues e moderação de comentários. Pior do que isto, são aqueles que andam pelo navio a fazer sessões fotográficas estranhíssimas, monopolizando os serviços de Andrihiminir, o cozinheiro pirata, que há mais de cinco dias não me serve o almoço a horas.
Penso que isto deve ser uma fase de habituação à vida dos mares e que daqui a uns dias a sua natureza sedenta de sangue e horror fará com que se fartem das férias e se decidam a atacar alguma coisa que não lagostas e sangria de champanhe.
Organizei um referendo sobre uma eventual curta estadia na Sardenha, esperançada que o não ganhasse e eu pudesse conciliar a reputação de capitã respeitadora dos princípios democráticos com a minha vontade de continuar a navegar. Os bloggers, mais uma vez os bloggers, fizeram campanha pelo sim e com argumentos tão desprezíveis como a necessidade de levar para casa recuerdos da Sardenha, conseguiram convencer o resto da tripulação a pernoitar aqui para comprar ímans para o frigorífico, postais com fotografias tiradas há mais de vinte anos e t-shirts a dizer i love Sardenha.
A única parte positiva deste acostamento na Sardenha é que mesmo sem assaltar ninguém, estamos fartos de ganhar dinheiro. Queria acreditar que as pessoas nos vêm entregar as notas que têm na carteira por a isso se sentirem coagidas perante a mera visão da nossa assustadora bandeira. Infelizmente, uma réstia de realismo, diz-me que, com toda a probabilidade, essa aparente rendição, se deve ao facto de, ao verem o nosso estranho grupo aportar armado de pernas de pau, chapéus, espadas, tapa olhos e lenços coloridos, nos confundirem com uma qualquer espécie de navio circense. 

domingo, 11 de agosto de 2013

Quarenta graus à sombra e uma pedra de gelo deslocada




Há momentos em que conseguimos esquecer-nos que um dos dois engoliu de um trago o destino que os deuses nos cozinharam. Por instantes, os últimos anos desmaiados na memória, como o pesadelo da madrugada que assoma, já leve e quase doce, no final da tarde seguinte.
Com lisboa ali em baixo, a rir-se, tu estendes-me a mão e eu entrego-te a minha. No reflexo do cão que dá a pata ao dono. Não chego a derrubar o gin. Fiz este gesto milhões de vezes. Sou uma profissional na arte de te devolver as mãos. Lisboa ri-se. E nós rimo-nos e toda a gente se ri. Como se o mundo inteiro pudesse encontrar alívio num entrelaçar de dedos. Aqueles de onde o sol de vários anos se entreteve a apagar marcas de aliança.
Ou talvez o alívio seja apenas meu. Enquanto mergulho na ilusão de que entre o antes e o agora nunca existiu nenhuma outra forma de vida humana, o meu coração bate ao ritmo do teu e o mundo volta a ser o lugar que nunca poderia deixar de ter sido.
Mas o instante é sempre demasiado breve. Antes que o gelo derreta no copo, mesmo antes que a minha mão se incendeie na tua, surge na linha do horizonte a nuvem de areia que denuncia a natureza das miragens.
Lá em baixo Lisboa mas na minha retina o deserto onde um nós abandonou o outro. O tempo, o calor e o cansaço apagaram do chão o rasto da culpa. Porém, mil anos não serão suficientes para dissolver da minha boca o gosto da areia.
Dizes-me que não teremos mil anos.
Somos os restos de um jardim roído pelas ervas daninhas de um ecossistema estrangeiro.
Digo-te que não deverias ter deixado o portão aberto.
Se o esquecimento perdurasse, se fosse possível recuperar a inocência, se houvesse lixívia que lavasse esta mancha...a vida seria infinitamente mais bela.



quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Ibn Batutta, em 1367, a falar sobre mim

"Durante as minhas viagens que ainda não terminaram - só o Insondável sabe o que eu procuro e se algum dia haverei de encontrá-lo -, conheci três espécies de viajantes: primeiro, os piedosos peregrinos. Que o Generoso vele por eles. Depois vêm os serenos comerciantes que seguem a pista das caravanas. Que o Perfeito cuide dos seus bens e os multiplique. E finalmente estão aqueles que suspiram contemplando o indefinível  horizonte do mar. Estranhos homens sem apego aos bens que Alá lhes dispensa. Preferem depender da sua vontade durante as aterradoras tormentas a desfrutar da amorosa hospitalidade do bazar. As suas almas encontram maior sossego no pavoroso rugir do vento do que na piedosa voz do imã anunciando o tempo de oração do alto do minarete. Que o Misericordioso alivie as suas penas, e as minhas, porque a estes sinto-os como meus irmãos..."

Nome de Toureiro, Luís Sepúlveda, Porto Editora, pg. 92.

Sepúlveda envia-me recados sobre o meu exílio

"Exila-se o que apenas conheceu um dos lados da medalha e que leva os seus erros para além de onde os aprendeu, mas o que atravessou todo o túnel descobrindo que os dois extremos são escuros deixa-se ficar preso, colado como uma mosca à fita impregnada de mel. A luz não existia. Não foi mais que uma invenção acalorada, e a claridade ortopédica do lugar que habitas diz-te que vives num território sem saída e que cada ano que passa, em vez de te entregar serenidade, sabedoria, astúcia, para tentar a fuga se transforma em mais um elo da corrente que te amarra. E podes movimentar-te, ou acreditar que sim, avançar em qualquer direção, mas as fronteiras ir-se-ão também afastando em progressão geométrica ao comprimento dos teus passos".

In, Nome de Toureiro, Luís Sepúlveda, Porto Editora.


sexta-feira, 2 de agosto de 2013

içar âncoras!




Falhámos a partida projectada para a última lua cheia por razões que se prendem com o facto de, nessa noite, eu ainda estar sequestrada no porão do meu navio a tentar controlar uma rebelião a bordo. Recuso-me a falar sobre esse episódio que poderia ter manchado para sempre a minha reputação de terrorista dos mares  se não se desse o caso, que se dá, de ter decidido que nunca aconteceu. Todos os navios Piratas precisam de um tabu e, depois de uma ponderada análise de dez segundos, concluí que este é tão bom como outro qualquer. 
Reescrita assim a história, decidi fazer constar das crónicas que, na última semana, estive antes de férias em S. Petersburgo.
Partiremos no domingo.
Como bem me lembrou Gualtiero, o italiano, é desnecessário esperar pela lua cheia para iniciar a viagem quando a embarcação está equipada com moderníssimos sistemas GPS e e cada um de nós tem, no seu próprio iPhone, uma bússola ao dispor. 
Ainda argumentei com a necessidade de impedir que o romantismo continue a perder para a tecnologia, mas a possibilidade real de os senhores do leasing me arrestarem o navio cujas prestações nunca paguei, fez-me deixar de veleidades lunares. 
Por sorte, ainda ninguém se lembrou de me perguntar para onde é que partimos…