quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Dia 30 do mês de Dezembro do Ano da Peste

Por fim, fui vencida a fazer as malas para terminar em pleno campo os dias do inominável ano. 
Que as cidades estão cheias de peste; que os teatros estão vazios; que as pessoas já não podem tocar nos copos umas das outras e desejar dias melhores; que irá chover a semana inteira; que há filas para tudo; que no campo as cores de início de inverno; que os vermelhos e os laranjas; que o cheiro das lareiras e a beleza do orvalho nos pastos; que os épicos passeios pelas ecovias; que as vantagens da adega e os sabores do Minho.
Enfim...
Cá estou. Vinte e quatro horas depois, entre os caprichos de um  aquecimento central que talvez exista ou não e o ártico que também decidiu mudar-se para cá,  ainda não consegui despir o casaco da neve e descalçar as botas. Penso que já nem sequer tenho nariz, mas tenho medo de ir ao espelho confirmar. O dedo mínimo da mão esquerda passou de encarnado a preto e também ameaça cair. O que me assola nem é tanto o medo de que a hipotermia me impeça de chegar a um ano decente. É mesmo a tristeza de morrer no meio do campo. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Kierkegaard, o cão Pirata

Kierkegaard, o cão Pirata, está velho.
Era um bebé de seis semanas quando o ofereci a mim própria de presente de Natal e o levei para todo o lado dentro dos casacos de inverno, como se fosse uma exarpe fancy. Depois cresceu e deixou de me caber no colo. Quando decidi ir para Pirata, fiz uma grande fogueira no pátio e queimei todos os livros, todos os vestidos e todos os sapatos. Quando embarquei no Aleph e soltei amarras na direção do crime, da liberdade e das Caraíbas, o único acessório que levei comigo foi kierkegaard e a sua coleira de marca. E uma chaise long de design. E alguns cristais. E um talher de prata. E uma toalha bordada. E umas iCenas, algumas das quais com as versões digitais dos livros que queimei. E os shampoos da Kiel’s. E um secador de cabelo. E umas sombras da Chanel e aquele verniz da moça do Pulp Fiction. ... mas voltando ao ponto, o único acessório que levei comigo - com exceção de todos os outros - foi Kierkegaard, o cão Pirata. Vivemos juntos a experiência do crime, do mar, da liberdade. Quando pelo amor traí o mar - as pessoas dizem escolher, mas todas as escolhas sérias são traições - abandonei o Aleph com a roupa do corpo e Kierkegaard, o cão Pirata, pela trela de marca. 
O cão foi o que primeiro se habituou à vida na terra. Ainda eu suspirava pelo sabor da lâmina da espada e pelo cheiro do sangue salgado, já o cão se aburguesara a jardins de magnólias, sofás finos e mantas de pura lã virgem. Vendeu-se por biscoitos gourmet e esqueceu o cesto da gávea nos pés do novo dono, a quem quis, à semelhança da sua dona, como nunca antes tinha querido a ninguém.
Kierkegaard, o cão Pirata, está velho. Dorme a maior parte do dia, rendeu-se à DogTv, só aceita comer patê gourmet servido em pratos dourados, ergue as orelhas ao assobio do seu dono do coração e quando o sonho o abana, eu sei, é nos macios relvados em que esfrega os costados que está a pensar. 
Kierkegaard, o cão Pirata, essa última testemunha da minha vida de liberdade e aventura já esqueceu os tempos em que mordia as ondas. 
Não o censuro. O sabor do Lindt de laranja também já me fez esquecer o gosto da espada nos dentes. 

sábado, 26 de dezembro de 2020

Tango caliente

Quebradas as amarras e a pequena campanula de cristal, a bailarina dança livre sobre a caixa das jóias. Tchaikovsky não previu isto. Os brilhantes que se soltam do cabelo de nylon espalham-se pelo mogno da base ao ritmo em que o cisne negro mergulha na sua profunda loucura branca. 
A bailarina já não gira aprisionada numa caixa de música. Fez do tampo o seu palco e dança e dança e dança até gastar os sapatinhos de plástico prateados. 
Sobre ela há de cair a noite de hoje e mil e uma outras. A bailarina dobra-se, por vício ou reflexo condicionado, na vénia à plateia imaginária. Ninguém bate palmas. A bailarina ainda não sabe. Mas, liberta, já dança sozinha para essa outra figura que a espera, do outro lado do espelho da caixa de música. 

2020

Foi o melhor e o pior ano da minha vida. 
Conheci os limites da alegria e da tristeza. 
Ganhei o meu marido, perdi o meu pai.
(Foi a primeira vez que consegui dizer qualquer um dos dois)
O Natal teve uma árvore verdadeira. A árvore da vida. Essa, sob a qual se passa tudo o que há milhões de anos se passa na estória dos homens. Já as luzes, meus amigos, as luzes são sempre a pilhas. O que nos ilumina esgota-se ao ritmo determinado por um qualquer fabricante que, apenas por sorte, pelo menos, não será chinês. 
Hoje há música na sala. Este ano aprendi que é preciso dançar enquanto há música na sala. Kierkegaard não nos ensina isso. Os russos também não. Podemos ler muitas bibliotecas e deixar assentar os sedimentos de qualquer coisa. Mas é preciso ganhar um marido e perder um pai para perceber isto: é preciso dançar enquanto há música na sala. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Noite

 Às vezes o peso da noite acorda-me no estremecimento de não saber onde tenho a espada. Entreguei-a há tanto tempo que devo ter esquecido onde a guardaram. Todos os armistícios têm o preço do desarmamento. E acordada não me queixo. Paguei pelo amor infinitamente menos do que vale. Pagaria, a cada dia, cem vezes mais. 

Porém, o sono faz-me ingrata. Sinto na jugular as ondas do velho mar e julgo que é do sal o que afinal é cheiro de terra. Ferve-me o sangue na memória da batalha. Peso a lâmina que me comanda o pulso. Todos os espelhos da casa refletem na alma a sombra que o dia não vê.
Depois acordo e tudo é paz, calor e terra e um rio na janela. 
E abraço-me com força à manhã. Para que a outra, que também sou, não me leve com ela.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Nós


 Todas as gerações e os poentes.

Os dias e nenhum foi o primeiro.

A frescura da água na garganta

De Adão. O ordenado Paraíso.

O olho decifrando a maior treva.

O amor dos lobos ao raiar da alba.

A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.

A Torre de Babel e a soberba.

A lua que os Caldeus observaram.

As areias inúmeras do Ganges.

Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.

As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.

Os passos do errante labirinto.

O infinito linho de Penélope.

O tempo circular, o dos estóicos.

A moeda na boca de quem morre.

O peso de uma espada na balança.

Cada vã gota de água na clepsidra.

As águias e os fastos, as legiões.

Na manhã de Farsália Júlio César.

A penumbra das cruzes sobre a terra.

O xadrez e a álgebra dos Persas.

Os vestígios das longas migrações.

A conquista de reinos pela espada.

A bússola incessante. O mar aberto.

O eco do relógio na memória.

O rei que pelo gume é justiçado.

O incalculável pó que foi exércitos.

A voz do rouxinol da Dinamarca.

A escrupulosa linha do calígrafo.

O rosto do suicida visto ao espelho.

O ás do batoteiro. O ávido ouro.

As formas de uma nuvem no deserto.

Cada arabesco do caleidoscópio.

Cada remorso e também cada lágrima.

Foram precisas todas essas coisas

Para que um dia as nossas mãos se unissem.


In Jorge Luis Borges, As Causas

Trad.: Fernando Pinto do Amaral

sábado, 17 de outubro de 2020

Enquanto houver dálias ao sábado...

 Dizem-me que no mundo, na europa, no país, em Lisboa, na minha freguesia, há ameaças, vírus e políticos, internamentos, doentes, mortos, aplicações e máscaras. Não sei nada sobre essas coisas. 

Ontem, a maré foi das grandes e o rio ia cheio e espelhado pela falta do vento. Hoje amanheci entre o sol e os braços do meu amor. Comprei dálias no mercado biológico aqui ao lado e demorei-me, ao som do jazz, a dispô-las na jarra. 

Se escolheres bem e tiveres muita sorte e tiveres vivido muito tempo dentro de um poema, pensei, talvez a tua vida, toda a tua vida, possa ela própria transformar-se num conjunto de estrofes harmonizado por um sentimento.

Agora, o meu amor toca guitarra aqui ao meu lado e, de alguma forma, eu sei:

Enquanto houver dálias ao sábado, tudo estará bem. 


quarta-feira, 17 de junho de 2020

Do flexiban

Dois comprimidos mais tarde, deitada de costas na cama, numa penumbra de sesta, vigiada pelo roncar do cão, adormeci a contratura que vive agarrada ao meu pescoço há mais de dez anos. Perguntam-me por que  não me livro dela. É uma contratura de estimação. Um repositório discreto de todos os enervamentos e angústias. Testemunha silenciosa de bagagens escondidas no fundo do rio. Dor amiga que avisa dos excessos. Álibi perfeito de relaxantes musculares. Essa pequena maravilha do reino da ciência.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Balada do Mar Salgado

Quando março começou seguiu-se junho e já ia na metade.
Perdi a primavera na minha cidade. Não vou falar dos jaracandás. Toda a gente fala nos jaracandás e até esse tempo já passou. Vou falar no frio das manhãs de primavera. Nunca passo tanto frio como naqueles dias em que decido que estará calor à tarde. Acontece todos os dias entre março e junho. Fez-me falta o frio das manhãs de primavera. É um frio que nos insulta, que nos coloca no nosso insignificante lugar, que nos emagrece. É o segundo ano que perco esse frio. O outro ano em que também o perdi foi um ano memoravelmente mau.
Cá em casa estamos bem, obrigada. Quando alguém tosse perguntamos com um ar descomprometido mas interessado “– covid?”.  Até agora as respostas têm sido sinceramente negativas.
Passámos três maravilhosos meses de quarenta, isolados mas felizes, entre o ócio isento de culpa e a comodidade dos relógios de sol avariados. Lemos. Cozinhámos. Tocámos a duas mãos uma pauta inteira. Banimos o pouco que ainda havia de televisão. Por pudor, fingi lamentar-me o mais que pude.
Agora já não deixamos os sapatos fora de casa. Não desinfetamos as mãos sempre que passamos por alguém e não passeamos o cão vinte vezes por dia. Não podendo manter a quarentena, esquecemo-nos completamente do pretexto e acumulamos máscaras cirúrgicas pelos cantos da casa sem sequer saber a quem pertencem.
Não voltei, ainda, a cruzar o mar.
Mas o mar, que é meu elemento, corre-me nas veias e, ocasionalmente, no rosto. Está em mim mesmo quando o meu único horizonte é a terra e as árvores de que são feitos os braços com que me embala o meu capitão.
Talvez talvez talvez, só, até nem precise de voltar.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Trade off

Às vezes, quando a noite é longa e o fresco da rua não me chega aos pés e crescimento das unhas me impede de dormir, às vezes, quando o resto da casa sonha o aroma dos lilases e eu sou submersa pela sombra dos poemas ao lado da cabeceira, às vezes, nessas alturas, queria que durante sessenta minutos, nem mais um segundo, a felicidade desse a trégua necessária à sobrevivência da vontade de escrever.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Na atividade da limpeza assim como na passividade da confidência

(Mulheres de limpeza: por regra, nunca trabalhem para os amigos. Mais tarde ou mais cedo, ficam ressentidos por sabermos tanto acerca deles. Ou então deixamos nós de gostar deles, por sabermos.)

Lucia Berlim, Manual para mulheres de limpeza, Alfaguara

domingo, 5 de abril de 2020

Diagnósticos

“Propõe-se que a felicidade seja classificada como uma perturbação psiquiátrica e incluída em futuras edições dos manuais de diagnóstico especializados sob a nova designação de perturbação afetiva, do tipo agradável. Numa resenha da literatura relevante está demonstrado que a felicidade é estatisticamente anormal, consiste num discreto aglomerado de sintomas. Está associada a uma ordem de anomalias cognitivas e provavelmente reflete o funcionamento anormal do sistema nervoso central.”

Phillip Roth, Teatro de Sabath, Publicações Dom Quixote

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Éramos felizes, mas ao menos sabíamos.

A manhã foi daquele azul assustador e belo que, sabem-no os corações intranquilos, costumam prenunciar a tempestade. 
Passeei o cão. Trabalhei meia hora. Treinei no piano o triplo desse tempo. Atendi o peixeiro. Fiz o almoço. Bebemos o vinho. Li Roth. Fiz uma sesta. Passeámos junto ao  rio. Fizemos o jantar ao som das mornas e dançámos na cozinha. 
Ouço-o tocar ali ao lado enquanto ajeito palavras que talvez vejam a luz do dia ou morram junto de todas as tantas outras que guardei para mim própria.
Agora, os dias são todos iguais. 
De um azul assustador e belo que, sabem-no os corações intranquilos, costumam prenunciar a tempestade. 

segunda-feira, 23 de março de 2020

Amanhã é o mesmo dia

Oh, e esse novo emprego que é sobreviver? 

terça-feira, 17 de março de 2020

Boletim das 23 horas

Aqui em casa continuamos assintomáticos.
Li um terço do último Rushdie; vi uma comédia francesa sobre normandos nus e assei umas douradas no forno.
Enquanto o capitão Strut toca na guitarra o Spanish Romance e o cão dorme nos meus joelhos penso que amanhã vou ler um terço do último Rushdie; ver um filme italiano sobre Sicilianos e fritar filetes de peixe espada.

Não toques nos objetos imediatos


“Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer
a boca fica em chaga.”
Herberto Helder 

segunda-feira, 16 de março de 2020

Sindérese

Definição: a suposta capacidade inata da mente humana para perceber os princípios básicos da ética e da moral. Um termo técnico de filosofia, que significa o princípio inato da consciência moral de todos os homens, que os dirige para o bem e os coíbe de praticar o mal.

In, A Casa Golden, Salman Rushdie

Movimento um post por dia até ao fim do Corona

Por amor deixei o mar. Silenciei o apelo das ondas até as não poder ouvir no búzio que guardo escondido numa gaveta. Por amor plantei-me na terra. Cobri os pés e esperei que as raízes chegassem ao outro lado do globo.
A troca foi justa. A terra recebeu-me com complacência e o amor tornou-a habitável.

Porém, ocorre-me agora, é da terra e não do mar que vêm os virus que nos prendem.

http://pipocomaissalgado.blogspot.com/2020/03/movimento-um-post-por-dia-ate-ao-fim-do.html?m=1