quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Salas



São nove e cinco da manhã. As portas abriram-se há cinco minutos.

A sala ainda não tem o ar esgotado que terá no final da tarde. O chão ainda está limpo. E uma criança vê-se ao espelho nele. Baloiçando o corpo na direcção do seu reflexo cor-de-rosa-pastilha-elástica. Há uma mulher negra e decidida que será a mãe da criança. Ou a tia. Porque a mãe da criança há-de ter partido para um lugar qualquer. Normalmente é assim.
A tia e a miúda esforçam-se por não ver a cigana, pesadamente, sentada ao lado. Tem o percurso das lágrimas vincado num rosto enrugado e, esta sim, seguramente é uma mãe. Mãe de um filho que está fechado numa outra ala do edifício. Onde o chão nunca está limpo, nem sequer de manhã. E onde nunca ninguém se consegue ver ao espelho. A mãe não veio ali fazer nada. Nada que não seja olhar para o seu filho que, de costas para ela, optará pelo silêncio. Por entre a silhueta escura do filho rogará pragas àqueles que, na sua percepção, são os algozes de um inocente que só vendia uns produtos que dizem que é droga mas que também pode não ser e que nunca fez mal a ninguém e que um homem tem que fazer pela vida.
Por ora, a cigana espera.
Todos eles esperam.
A quatro metros de distância, um homem de quarenta anos e fato italiano desespera-se ao telemóvel com uma secretária que não consegue encontrar qualquer coisa dento de uma pasta que é azul escura e tem na lombada o nome do cliente com letras gordas. Ele desliga a chamada anunciando que tem a mulher em linha. Mas trinta segundos depois, percebe-se que, com as mulheres, nunca se fala assim.
Passa um indiano com ar de quem começou o dia de madrugada, arrastando um carrinho carregado de sandes de plástico e chocolates fora do prazo de validade. Exibe orgulhosamente a chave com que abrirá a máquina onde colocará o veneno que alimentará todas as esperas do edifício.
Instala-se em frente da máquina, aberta e indisponível, com gestos lentos. Encontra a glória do dia no momento em que os outros têm que esperar que ele acabe o seu trabalho para poderem sacar alguma coisa da máquina em troca de uma moeda.
Ri-se para mim com ar satisfeito. Retarda os gestos.
Hoje tem uma vítima especial.
Enquanto a criança continua a fazer-se atrair pelo seu reflexo, aparece um funcionário que faz voz de soprano ao pronunciar, alto, nomes incompreensíveis. Algumas pessoas avisam que existem. A atenção da sala concentra-se nele por um curto instante.
A excepção é o indiano. A gozar o seu pequeno momento de vingança social.
Depois, o funcionário cala-se. A criança volta a tingir o chão de pequenas manchas cor-de-rosa-pastilha-elástica. A tia negra afaga o seu próprio pescoço. A cigana dirige rezas contra uma sala, por enquanto, ainda vazia. O advogado desliga o telefone. Quinze outras pessoas passam em três sentido diferentes.
Finalmente, o indiano devolve-me a máquina que me cospe um café de péssima qualidade.
Uma mulher aparece e cumprimenta efusivamente o homem do fato italiano. Queixam-se do sistema que os deixa à espera. E ainda só passaram cinco minutos desde que as portas abriram. Esperarão muitas horas.
Dois polícias entram pela porta principal aos empurrões a um miúdo. O miúdo olha para mim com ar ameaçador. Eu não me lembro dele. Mas ele lembra-se de me odiar. Um atento segurança passa pela criança, pela tia, pela cigana, pelo advogado, pela conhecida do advogado e pelo carrinho vazio de comida do indiano e pergunta-me se preciso de alguma coisa.
Ele sabe que eu só preciso do café que já tenho na mão. Mas foi a forma que encontrou para me dizer que não devo estar ali. As portas já estão abertas. Os actores não se sentam na assistência. São os procedimentos. Tenta empurrar-me com o olhar, devolvendo-me àquela parte do edifício onde só entra quem souber o código.
Podia perguntar-lhe se me querem esconder deles, ou se os querem esconder a eles de mim. Mas ele limitar-se-ia a responder-me que não quer é problemas.
Ninguém quer problemas. O miúdo escoltado pelos polícias também não queria problemas. Só queria espetar uma faca nos pulmões de outro miúdo.

Eu levo o meu café, digito o código e devolvo a normalidade ao mundo com o gesto de fazer de conta que não faço parte dele.

Daqui a oito horas voltarei a esta sala para retirar o meu último café do dia.
Estará vazia. E, no entanto, repleta com os despojos celulares de um dia de confissões e arrependimentos, acusações e ameaças, ódios, raiva, dor e medo. Muito medo.
A criança terá voltado para casa com a tia e não será institucionalizada se uma assistente social se convencer que a tia tem competências de parentalidade. A cigana terá sido expulsa da sala por incomodar os trabalhos com os seus soluços demasiado altos. A secretária do advogado encontrará a pasta azul. Ele fará um acordo, a tempo de uma sobremesa com a amante do telefonema. O indiano terá voltado para o sítio de onde veio, esquecido que hoje teve uma vítima especial. O filho da cigana foi recolhido da civilização humana e é como se já não existisse, agora que não o podemos ver.
O miúdo escoltado pela polícia estratificará o ódio a um nível superior ao medo.
Logo que possa, matar-me-á.

Na sala vazia, enquanto me vê brigar com a máquina do café, fechada e disponível, o segurança da manhã aproxima-se. Controla a genuína vontade de me fazer uma festa na cabeça e deseja-me uma boa noite com o ar do marido que pergunta:
“Querida, como foi o teu dia?”.

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