Neste ano, em Portugal, já morreram 40 mulheres assassinadas por maridos e ex maridos.
Conheces os números e não te provocam nenhum arrepio pela espinha acima. Até te admiras que não sejam mais. Não por insensibilidade, que não és de desejar o mal das outras, mas porque há um terrível conforto na banalização do drama, que alivia a carga da culpa que tomas de empréstimo.
Chamas-de Deolinda, Maria, Shirley ou Constança. Tens um ou quatro apelidos e tanto vives numa aldeia do interior, como num t1 apertado na Brandoa, ou num duplex nas Amoreiras. Por esta altura, já te ocorreu a possibilidade de um dia morreres pela mão de quem julgas amar. A experiência ensina as fragilidades do corpo humano e se há quatro meses ele não tivesse tido aquilo que confundes com um laivo de bondade e que o fez deixar de te apertar o pescoço quando as pernas já te fraquejavam, ou se a sorte não tivesse afastado de ti, na semana passada, aquela esquina da parede, o teu corpo já teria desistido.
Não tens medo de morrer. Nalgum ponto da tua existência convenceste-te que é uma forma natural, talvez a única, de libertação. Entregas pois ao corpo a capacidade de resistência já que a alma está há muito desmaiada. A violência faz parte da dinâmica daquilo a que ainda chamas amor e no teu delírio as ondas de violência e humilhação a que te sujeitas são um segredo que vos aproxima e vos faz, aos dois, cúmplices do mesmo crime.
É por isso, mais do que por vergonha, que quando te perguntavam no emprego pelas mazelas no rosto, inventavas respostas que já sabias colherem apenas encolheres de ombros e resmungos de tu lá sabes. Chegaste a gritar em desespero, na cara não, mas foi inútil. E agora já nem sequer perguntam. Por fim, também as tuas feridas se tornaram invisíveis.
Não foi sempre assim, nunca é. Em tempos orgulhaste-te da sensação de lhe pertenceres e foram felizes por dois meses ou dois anos. Mas isso foi antes do vinho, ou do mau feitio, ou dos ciúmes, ou dos nervos, ou do stress profissional. Depois, as indisposições dele foram a espiral crescente que agora ocupa todas as divisões da casa e para as quais contribuis com o simples facto de existires. Já foste à bruxa e lavaste a porta da casa com vinagre ou à livraria onde compraste os livros de auto ajuda que leste às escondidas. À falta de outra coisa tens esperança.
Não te vais embora porque achas que não vales a pena. Mas colecionas falsas justificações que tanto podem ser o dinheiro, a casa, os teus pais ou os teus filhos.
Tens no quarto uma fotografia do vosso casamento ou de um fim de tarde na praia em que alguém congelou a expressão apaixonada que te serve de prova de que não foi sempre assim.
Com sorte, é essa fotografia a última coisa que verás na tua vida. Quando o vinho, o mau feitio, os ciúmes, os nervos ou o stress profissional do teu marido forem a faca que te espeta no peito, a arma que te dispara na cabeça ou as mãos com que te estrangula o pescoço, verás a tua própria expressão de outros dias, plasmada num retângulo de celulóide, e lerás nela a terrível acusação por nada teres feito para te salvares.
Se tiveres azar, essa mesma acusação estará nos olhos dos teus filhos, testemunhas da vossa cumplicidade no crime.
Não queiras ser a quadragésima primeira vítima e ir passar o Natal à terra.
Queixa-te.
(Fotografia tirada da internet de autoria desconhecida)
Ah, essas mulheres de Atenas:
ResponderEliminar"Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas"
Elas não têm gosto ou vontade
EliminarNem defeito ou qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos
Só têm presságios"
Excelente ensaio, Cuca.
ResponderEliminarMas discordo, nem todas as vítimas são 'cúmplices'.
Obrigada, quiescente.
EliminarPoucas vítimas são cúmplices no final, embora muitas o sejam no início do processo. A violência é um processo. De qualquer forma aqui a cumplicidade é figurada.
Concordo, qui.
ResponderEliminarNo texto não se pretende dizer que as mulheres são cúmplices, mas que se sentem cúmplices. Não é a mesma coisa.
EliminarAs mulheres nunca são cúmplices. Peçam por acreditar que não há dois dias iguais. Até podem ter razão : a partir do primeiro tende a piorar.
ResponderEliminarDiz-ze que o amor tudo desculpa. O medo também, muitas e muitas vezes.
E a falta de sonhos e os presságios, como na canção do Chico Buarque.
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